Invocação à Saudade
melancólica dor, e gota a gota
vertes no coração tóxico acerbo,
que entorpece a existência, e a vida rala!
Tu, tirana da ausência, que retratas
5
em fugitiva sombra, em negro quadro
a imagem do passado;
que ao filho sempre a mãe anosa antolhas,
a pátria ao peregrino, o amigo ao amigo,
o esposo à esposa; e ao malfadado escravo,
10
que sem futuro pelo mundo vaga,
mostras a liberdade, e o lar paterno;
e a cada simulacro que apresentas,
com farpado aguilhão rasgas o peito
do triste que te sofre;
15
e nos olhos sanguíneos, encovados,
não lágrimas destilas,
mas fel, só atro fel, bárbara, espremes.
Oh saudade! Oh martírio de alma nobre!
Malgrado o teu pungir, como és suave!
20
Como a rosa de espinhos guarnecida
aguilhoa, e apraz co'o doce aroma,
tu feres, e mitigas com lembranças.
Mas ah! o teu espinho ainda é mais duro;
e essas tuas lembranças são falaces,
25
fores são que o punhal de Harmódios cobrem.
Para agora oprimir-me tudo se ergue;
tudo agora de encantos se reveste,
para mais agravar minha saudade.
Sítios qu'eu desdenhei, sítios que amava,
30
templos que orar me viram respeitoso,
estes céus de safira, estas montanhas
cobertas de cocares de palmeiras,
pais, amigos, irmãos, ah! tudo, tudo
me está representando a fantasia,
35
como que pouco a pouco quer matar-me.
Que cena há aí que mais encantos tenha,
que ver lânguida virgem, pudibunda,
pálida a fronte, as faces desbotadas,
baixos os olhos, revoando a coma,
40
e uma terna expressão de oculta angústia
que lavra-lhe as entranhas?
Que cena há aí que mais encantos tenha,
que vê-la num baixel, segura ao mastro,
suspiros exalar, longos suspiros,
45
que voam murmurando, e se misturam
co'os ventos que sibilam nas enxárcias?
De vez em quando olhar, e só ver nuvens,
nuvens que o céu encobrem, retratando
fugitivas imagens, que recordam
50
terras da pátria; quem, meu Deus, quem pode
resistir a tal cena?
Tu matas, oh saudade!... Às crespas ondas,
delirante Moema, e quase insana,
por ti ferida, se arremessa... e morre...
55
Que não pode a mesquinha
longe viver do fugitivo amante,
que tanto amor pagara com desprezo.
Lindóia, entregue à dor, desesperada
n'ausência de Cacambo, mal lhe soa
60
do caro esposo o último suspiro,
também suspira, odeia a vida... e morre...
E tu, Clara infeliz, filha dos bosques,
gerada entre palmeiras,
nada pode aprazer-te, nada pode
65
extinguir-te a lembrança
da rústica cabana, onde embalada
em berço foste de tecidas varas.
De diurnas, domésticas fadigas
descansada, lá quando alveja a lua
70
em fundo azul, mil vezes te enxergaram
num tronco de coqueiro reclinada,
cantar da infância tuas árias saudosas,
árias bebidas nos maternos lábios.
Ai... minha mãe, dizias,
75
ai... minha mãe... quem sabe se ainda vives!
Aldeia onde nasci, pobre cabana,
rede que me embalavas, eu vos choro!
Oh terra do Brasil, terra querida,
quantas vezes do mísero Africano
80
te regaram as lágrimas saudosas?
Quantas vezes teus bosques repetiram
magoados acentos
do cântico do escravo,
ao som dos duros golpes do machado?
85
Oh bárbara ambição, que sem piedade,
cega e surda de Cristo a lei postergas,
e assoberbando mares, e perigos,
vais infame roubar, não vãs riquezas,
mas homens, que escravizas!
90
Mil vezes o Senhor, para punir-te,
opôs ao teu baixel ondas, e ventos;
mil vezes, mas embalde,
nas cavernas do mar caiu gemendo.
Á voz do Eterno obediente a terra
95
se mostra austera e parca,
que a lágrima do escravo esteriliza
o terreno que orvalha.
A Natureza preza a Liberdade,
e só franqueia aos livres seus tesouros.
100
Oh suspirada, oh cara Liberdade,
descende asinha do Africano à choça,
seu pranto enxuga, quebra-lhe as cadeias,
e adoça-lhe da pátria a dor saudosa.
Oh palavras! oh língua! quão sois fracas,
105
para d'alma narrar os sentimentos!
Oh saudade, aflição dura e suave!
Oh saudade, que o rosto me descoras,
Saudade, que me apertas, que nos lábios
decas-me o almo riso,
110
e o pensamento meu absorves todo,
como uma esponja o líquido, e o repartes
co'o passado, o presente, e co'o futuro.
Oh saudade! Oh saudade!
Minhas endechas mal carpidas colhe;
115
dá-me um lúgubre som, como o das vagas
que nas praias se quebram
sem ordem, como os meus chorados cantos;
uma voz sepulcral, como a da rola
que em solitária selva se lamenta;
120
um acento funéreo, um eco lúgubre,
como o eco das grotas, quando a chuva
goteja reboando.
Ah! corram minhas lágrimas, ah! corram
a quantos meus gemidos escutarem.
125
Oh saudade! Oh saudade!
Pois que em minha alma habitas,
e sem cessar me lembras pais, e Pátria,
minhas tristes endechas serão tuas,
saudade, serei teu... Saudade, és minha.
130
Adeus à pátria
Oh margens do Janeiro,
eu me ausento de vós com mágoa e pranto!
Adeus, brilhante céu da terra minha!
Adeus, oh serras que vinguei difícil!
10
Adeus, sombrias várzeas,
que vezes passeei meditabundo.
Adeus, augustas torres
Do templo, onde lavei-me do pecado!
O som funéreo dos sagrados bronzes
15
ainda vem magoar os meus ouvidos,
e n'alma despertar-me
tristíssimas, cruéis reminiscências.
Eis ali a montanha
cujos pés beija o mar que em flor se esbarra.
20
Quantas vezes ali triste, sentado,
minha alma no infinito se espraiava,
os olhos vagueando
sobre este mar, que deve hoje levar-me!
Sim, eu te deixo, oh Pátria;
25
e deixo-te lutando co'as procelas,
que no teu horizonte se abalroam.
Ah! quanta dor o coração me punge,
por ver alguns teus filhos,
baldos de pundonor, como te olvidam.
30
Teus filhos... Ah! cubramos,
se algum há, com desprezo o seu opróbrio.
feras serpentes qu'entre mansas aves
se aqueceram nos ovos, e mal nascem
dilaceram os filhos,
35
e as próprias aves que lhes deram vida.
Malévolos sicários,
raça espúria, sem Pátria, ermos de
brio,
já traidores alfanges afiando,
o ensejo só aguardam favorável
40
de ensopá-los no sangue
daqueles a quem bens, e honra devem.
Não é pavor, nem susto
de aos pés calcado ser de intrusos Neros,
nem de rojo levado ao cadafalso,
45
que hoje arrancar-me de teu grêmio pode;
nem a ambição me acena
qu'eu vá mercadejar por longes terras.
Não, eu não temo a morte,
nem dos tiranos temo a catadura;
50
ei firme assoberbar adversos fados;
que o varão, que o dever toma por norte,
sempre a Pátria antolhando,
morte honrosa prefere à vida escrava.
Amor da sapiência,
55
desejo de colher lições do mundo
leva-me às margens do soberbo Sena,
para, se me não for avessa a sorte,
ante o altar da Pátria
meus serviços prestar vir respeitoso.
60
A ti me voto inteiro,
tu és o meu amor, minha alma é tua.
Só para te ofertar flores cultivo
nos mágicos jardins da Poesia;
se te apraz seu aroma,
65
Ah! como fico de prazer ufano!
Ah! praza a Deus que a nuvem,
que obumbra ora teu céu, tão belo sempre,
a cólera do Eterno não desabe
sobre as tristes cabeças de teus filhos!
70
Ah! praza a Deus que nunca
teu Anjo tutelar fuja a teus lares!
Oh Senhor, tu protejes
o povo que se vota à Liberdade;
a Liberdade é dom que nem tu mesmo
75
aos homens tiras; como um mortal ousa,
erguido pó da terra,
eclipsar os teus dons, manchar teu nome?
Cara Pátria, sem susto
tua fronte levanta majestosa,
80
como tuas montanhas, e teus bosques!
Não sejas só no mundo conhecida
por teus ricos tesouros,
pelos prodígios da sem-par Natura.
Oh Pátria, ovante marcha;
85
já em teu seio encerras Varões dignos
de renome imortal; não te envergonhes
de cingir-lhes as frontes, de apontá-los.
são eles que te escoram,
e que te hão de elevar à Eternidade.
90
As solitárias ondas
que hoje sonoras tuas: praias beijam,
já outrora, não pedras, não espuma,
mas cadáveres, e sangue arremessaram,
cadáveres, e sangue
95
dos nascidos nos teus sagrados bosques.
Se inimigos ousarem,
armados contra ti, em frágeis lenhos,
expelir o trovão, o raio, e a morte,
abrir-se-hão estes mares a sorvê-los;
100
seus lívidos cadáveres
tuas areias juncarão de novo.
O coração pressago
veemente palpita, e voz suave
em meu peito ressoa, e me anuncia
105
que o céu destes horrores te preserva;
o coração não mente;
a paz firmou-se em ti; seja ela eterna.
Como a enchente do Nilo
que estendendo-se sobre a terra Egípcia,
110
deixa após si fertilidade aos campos,
assim, propicia paz, tu vivificas
o povo que te hospeda,
e por ti bafejada a indústria medra.
Como serei ditoso
115
se dado ainda me for correr teus campos,
beijar de anosos pais as mãos rugosas,
abraçar os amigos, e arroubado
nesse celeste instante
Novos, oh Pátria, cânticos tecer-te.
120
Rio de Janeiro, 3 de julho de 1833
À minha família
Lá vejo o caro pai sisudo e grave,
a quem anos as faces enrugaram,
e a fronte encaneceram;
10
a mão ao filho estende, e a bênção
lança:
Boa viagem, diz, boa viagem;
Deus te guie, e te traga
na sua santa guarda,
sempre digno de mim, da Pátria digno.
15
Memorandas palavras!
Palavras de meu pai... n'alma do filho
ausente, eternas ficarão gravadas.
Ternos irmãos -adeus- me estão dizendo
com tão fúnebre acento,
20
como se eu condenado à morte fosse.
Um por um os abraço, e adeus lhes digo.
Quero partir... forcejo; os olhos cerro...
Porém a dor que o coração me preme,
forças me tira, e me fraqueia os passos;
25
em borbotões rebentam
lágrimas, que enxugar em vão pretendo.
Que mão gelada é esta, que me embebe
duro alfange no íntimo do peito?
Que mão desapiedada me retalha
30
o coração magoado?
Mão da saudade, és tu, eu te conheço.
Oh momento de ausência, como és agro!
Mais agro não me foi aquele dia
em que co'a morte ao lado,
35
quase caí do leito à sepultura.
Já brilhava a meus olhos moribundos
a luz de bento círio,
que ante um sagrado Crucifixo ardia.
Chorava minha mãe, e seus cabelos
40
sobre meu frio peito debruçavam-se.
Colocado entre o mundo e a Eternidade,
meu ser se dividia, e ingente peso
o aflito coração me comprimia,
como se férreos braços me cerrassem.
45
Ah! porque inteiro conservou-se o estame
em luta tão cruel? E' qu'eu devia
sofrer mais este golpe, e da existência
não estava inda o círculo completo;
assaz não tinha o Mundo conhecido,
50
conhecê-lo devia.
Neste instante que a dor absorve todo,
não me vigoram de um porvir brilhante
lisonjeiras lembranças,
sonhos falaces, esperanças loucas,
55
que embriagam a mente do acordado.
Quisera aqui morrer, quisera nunca
estranhas terras visitar, que outrora
eu tanto cobiçara,
antes que os pais deixar, irmãos e Pátria.
60
Mas uma estrela guia
a seu destino o homem.
Quem de Deus penetrar pode os arcanos?
Quem do Eterno à vontade opor-se pode?
Cumpra-se a minha estrela... E nós choremos,
65
que num vale de lágrimas estamos.
Chorando nossas mães vida nos deram,
chorando à luz nascemos, e mil vezes
esta vida choramos, e na morte
uma lágrima ainda se desliza
70
dos revirados olhos:
Das lágrimas a fonte só se estanca,
quando da vida apaga-se a centelha.
Pais, irmãos me rodeiam.
Onde estão os amigos? Um ao menos
75
não me vem abraçar neste momento?
Um só não terei eu, que me acompanhe
até à triste praia,
e o ósculo da amizade aí me imprima
na hora da partida?
80
Eu vos conheço, amigos!
Convosco fique a paz, fique a alegria,
venha o pesar comigo.
Caro pai, boa mãe, irmãos queridos,
meu último suspiro vosso seja...
85
Adeus... adeus; eu parto.
Rio de Janeiro, 3 de julho de 1833
A tempestade
Hei de eu morrer, oh Pátria,
sem que um suspiro teu sequer mereça?
5
Sem que minha existência útil te fosse?
E este mar cavará o meu sepulcro?
Meu corpo rolará entregue às ondas,
té que os marinhos tigres o devorem?
Não terei uma campa, um epitáfio,
10
onde no dia aos mortos consagrado
as lágrimas de amigo se deslizem?
Eu estava tranqüilo...
Como um brando regato serpenteia
entre florida, perfumada relva,
15
ou como a lua plácida fulgura
na abóbada celeste,
recamada de nítidas estrelas,
assim os dias meus se devolviam
em suaves vigílias, brandos sonos.
20
Tinha um pai, uma mãe, irmãos, amigos;
debaixo de meus passos se movia,
sem qu'eu sentisse, a terra;
ora de humana voz ternas cadências
as passageiras mágoas me adoçavam,
25
ora coberto com dosséis de folhas,
que em chuveiros de flores me cobriam,
terno cantava ao som da frauta agreste
que o sabiá simula.
se no cume da serra a tempestade
30
Caliginosos braços estendia;
se nas torres dos templos se esbarravam
lampejantes coriscos;
na paterna mansão, ermo de susto,
escutava o trovão, e o hino excelso
35
que entoavam meus pais venerabundos.
Oh! com que rapidez tudo se muda!
o homem nem prevê próximos males!
Aqui, neste Oceano,
sem que sequer um só prazer desfrute,
40
tudo é horror, e um vasto cemitério.
De cada lado gigantescas vagas,
irritadas elevam-se, curvando
sobre o navio que sem tino vaga.
negras nuvens do sol a face enlutam;
45
soltos trovões se embatem, troam, bramam;
rijo sibila o vento nas enxárcias;
ante a proa em montanhas espumosas
pulveriza-se o mar, roncando horríssono;
gemendo as vergas beijam
50
a onda que se empola, ou já se afunda,
quais débeis canas que o tufão acurva.
Que horror, oh céus! Que sorte nos aguarda!
Se é nossa estrela que morramos todos,
quero ser o primeiro
55
em quem, oh ondas, sacieis a fúria.
Procuro embalde, cintilar não vejo
Santelmo de esperança;
só vejo a morte abrir a foz medonha
em cada vaga, que engolir promete
60
o lenho, surdo à voz do palinuro.
As velas ferram desmaiados nautas,
rouqueja o capitão, soa a buzina,
mulheres tremem, criancinhas choram,
e sobre a bomba passageiros curvos
65
arquejando se afanam.
Fitas de fogo ardentes, inflamadas,
entre rotos listões de negras nuvens,
no horizonte se estendem;
vasto lago de sangue o mar parece;
70
relâmpagos mil chovem, mil se apagam;
raios dardeja o céu enfurecido,
e os vermelhos coriscos no ar se cruzam,
como cipós que os bosques emaranham,
ou qual num rio amontoadas serpes,
75
Curvilíneas se enlaçam, sobem, descem.
Oh meu Deus! Oh meu Deus, teus olhos volve
sobre os filhos dos homens.
É verdade, Senhor, eles ingratos
no tempo da bonança se esqueciam
80
da tua onipotência;
ousamos, ímpios, profanar teu nome;
mas piedade, Senhor, hoje invocamos.
Como filhos rebeldes,
que os sãos conselhos paternais desprezam,
85
Zombam mesmo dos pais, e de delírio
em delírio à desgraça se encaminham;
e quando já no poço da miséria
lhes brada a consciência,
então os pais invocam;
90
e se os pais os não salvam, ali morrem.
tu és pai, oh meu Deus! Misericórdia!
Um sopro de teus lábios foi bastante
para armar contra nós a tempestade;
um sopro de teus lábios
95
basta para acalmá-la.
À tua voz, Senhor, tudo se humilha,
o mar, a terra, o céu, o vento, o raio;
fala, seremos salvos.
Amaina o vento, o mar se tranqüiliza!...
100
Maravilha de Deus!... As nuvens subam
a teus pés os meus hinos,
hinos acesos nos transportes d'alma;
voem de mundo em mundo, de astro em astro,
de Anjo em Anjo, até qu'eles se harmonizem,
105
e dignos sejam, oh Senhor, que os ouças.
Glória! glória ao Senhor! estamos salvos!
Desaparece a morte,
raia o sol, ri-se o céu, o mar se aplana!
Glória! glória ao Senhor! estamos salvos!
110
Afaga-me a esperança,
que renasce no fundo de minha alma,
como a fênix das cinzas.
Oh Pátria, serei teu; minha existência
ao louvor do meu Deus, a teus louvores
115
de ora avante a consagro.
O dia 7 de setembro, em Paris
que a mente me acendia,
em tempo mais feliz, em qu'eu cantava
das palmeiras à sombra os pátrios feitos;
sem mais ouvir o vago som dos bosques,
5
nem o bramido fúnebre das ondas,
que n'alma me excitavam
altos, sublimes turbilhões de idéias;
com que cântico novo
o Dia saudarei da Liberdade?
10
Ausente do saudoso, pátrio ninho,
em regiões tão mortas,
para mim sem encantos, e atrativos,
gela-se o estro ao peregrino vate.
Tu também, que nos trópicos te ostentas
15
fulgurante de luz, e rei dos astros,
tu, oh sol, neste céu teu brilho perdes.
Oh fantasia, reproduz se podes
o enérgico quadro, que meus olhos
outrora extasiara;
20
as cenas reproduz de entusiasmo,
Que o coração abrasa
como o sol quando a pino os homens fere;
memória, hoje recorda aquelas vozes
dos brasilenses peitos escapadas,
25
como do Chimboraço ardentes lavas,
e no templo de Deus gratas soavam.
Recita aqueles hinos,
que angélicas donzelas, varões probos
alternos entoavam neste Dia,
30
Da Liberdade em honra.
Mas em vão, que nos ares embruscados
o mimoso colibri não adeja,
nem longe do seu ninho o canto exala
o sabiá canoro.
35
Ah! se ao menos a dor que me alma punge,
e a existência me azeda,
um pouco se aplacasse, e doce riso,
filho do coração, subisse aos lábios,
quiçá na ausência da querida
Pátria
40
pudesse, inda que rouco,
mais um hino ajuntar aos outros hinos,
com que de meu amor lhe fiz ofrenda,
quando no grêmio seu prazer gozava.
Lá, no teu seio, a vida respirando
45
tranqüilo e sossegado,
ou no mar agitado, à morte exposto,
ou aqui nesta plaga tão remota,
fiel te sou, oh Pátria; não te olvido
pelas grandezas que me ofrece a Europa.
50
Estes eternos monumentos d'arte,
estas colunas, maravilhas mortas,
estas estátuas colossais de bronze,
estes jardins soberbos, estes templos
são belos; mas não são de minha
Pátria.
55
Tuas virgens florestas, e teus templos
mais me aprazem que tudo que aqui vejo.
Ah! quem me dera agora, em grato sonho
iludido, cuidar que me revolvo
ignorado entre os meus, entre o tumulto
60
do povo que no rosto traz impressa
a glória deste Dia!
Quem me dera que os meus rústicos hinos
por ele ouvidos fossem,
e por ele aplaudidos
65
no delírio do sacro amor da Pátria!
Oh! como é doce memorar os tempos
da passada alegria!
Como é doce escutar ternas cadências
de branda voz de pudibunda virgem,
70
quando fora da terra a alma vagueia
No celeste infinito!
Mais doce é celebrar os claros feitos
dos seus concidadãos, e unido a eles,
beber na mesma taça o entusiasmo,
75
e no divino arroubo
os céus congratular, render-lhes graças!
Aqui da Liberdade repetido
não soa o mago acento em meus ouvidos;
nem o auriverde pavilhão tremula,
80
imagem das riquezas
da terra minha, fértil, abundante;
nem o canhão ribomba, que assinale
que este Dia ao Brasil é consagrado.
Só o estridor ressoa
85
de turbulento povo, indiferente
da Pátria minha à glória.
Dia da Liberdade!
Tu só dissipas hoje esta tristeza
que a vida me angustia.
90
Tu só me acordas hoje do letargo
em que esta alma se abisma,
de resistir cansada a tantas dores.
Ah! talvez que de ti poucos se lembrem
neste estranho país, onde tu passas
95
sem culto, sem fulgor, como em deserto
caminha o viajor silencioso.
Mas rápidos os dias se devolvem;
e tu, oh sol, que pálido me aclaras
nestas longínquas plagas,
100
brilhante ainda raiarás na Pátria,
e ouvirás meus hinos
em honra deste Dia, não magoados
co'os fúnebres acentos da saudade.
Adeus ao meu amigo M. de Araújo Porto Alegre
Com insolúvel nó a ti me liga
sagrada, oculta força.
Fitos na Pátria os olhos, sempre avante,
10
araújo, marchemos.
Amamo-nos; que importa Grécia, e Roma
vás ver sem mim?11 Assim stá
destinado.
na Pátria de Platão, e de Lionides,
de Rafael na Pátria
15
não, não te esquecerás do teu amigo.
Vai; sapiência colhe em solo estranho;
depois conosco pródigo reparte.
Assim de flor em flor errante abelha
o néctar frui, que em mel ofrece aos homens;
20
assim de gotas pluviais se embebe
o ancho seio do monte,
que em límpidas correntes depois mana.
Vai; ao Parnaso sobe; aí meu nome
entoa para o céu, e atento escuta;
25
se os ecos responderem,
junto do nome teu meu nome grava
no mármore que achares.
Ah! lembra-te de mim quando de Tasso
visitares o cárcer.
30
Quando do longo meditar cansado
estiveres de Roma nas ruínas;
quando só passeando n'Ápia estrada,
ou da morte os segredos contemplando
dos Mártires Cristãos nas catacumbas;
35
quando ouvires soar de amigo o nome,
de mim te lembrarás, dirás contigo:
quem sabe se por força da amizade,
em mim pensa ele agora, como eu nele?
Vai; teu gênio alimenta.
40
breves os dias são, os anos breves,
e dos filhos dos homens breve corre
a vida afadigada,
como nos ares rápido meteoro.
Ah! quanto a missão custa
45
cumprir na terra, onde atalaias somos!
Na começada empresa
somente ao fraco arrepiar é dado;
não se releva ao campeão donoso,
que desde o albor da idade
50
n'alma ferveu-lhe em turbilhões o engenho,
que lhe inspirara a Pátria.
Enganados num dia os mortais podem
às mãos de um néscio confiar o mando,
com que depois os curva;
55
podem coroas repartir, e cetros,
e púrpuras reais, e tit'los nobres;
podem rolar seus ídolos dos tronos,
tomar os louros que iludidos deram;
mas tu, raro no mundo, dom sublime,
60
gênio, quem te reparte?
Deus só, Deus só te envia a seus diletos.
Gênio, filho de Deus, fogo celeste
baixado à terra em prol da Humanidade!
Aquele em cuja fronte resplendeces,
65
cujos lábios inflamas,
um Homero será, Platão, ou Fídias,
radiantes padrões, astros de glória,
de estrelas escoltados,
que como o sol, do oriente ao ocidente,
70
giro farão eterno.
Sinal em tua fronte tens do Gênio;
não pertences a ti, tu és da Pátria.
Com teus pincéis divinos
deves seus feitos esmaltar, preclaros;
75
eu a teu lado cantar-lhe-hei a glória.
Unidos, sempre amigos, sempre à mesma
vontade obedecendo,
que doce nos será então a vida!
Tempo, tempo, não voes; Pátria, aguarda;
80
Araújo, marchemos.
No álbum de um jovem amigo
É qual sereno rio a mocidade,
que as imagens retrata, e não conhece
10
o bem, e o mal, e as ilusões do mundo:
é como verde, flácida vergôntea,
que a forma toma que o cultor lhe imprime,
e boa, ou má, não mais depois se muda.
Quem, como tu, da Pátria longe vive,
15
longe dos paternais, úteis ditames,
assaz tem que lutar, se à glória aspira.
filósofos não faltam que te instruam;
mas da vida, nas páginas de um livro,
não se aprende a ciência.
20
Estuda, sim estuda, mas pratica
dignas ações de ti; e eu te asseguro,
pois que a Natura te protege, e inspira,
qu'inda um dia serás brilhante estrela
entre os astros que a Pátria nossa adornam.
25
A Deus praza que a Pátria não iludas,
e os votos de teus pais, e dos amigos.
A todo o instante que este livro abrires,
lendo estes versos, dize: hei um amigo.
Ao deixar Paris
Sim, com justa razão te ornas de orgulho,
pátria de heróis, refúgio de infelizes,
vítimas do erro, que ainda a Europa preme
com cem braços de ferro; fugitivos,
em teu grêmio cabal abrigo encontram.
10
mãe desvelada não mais pronta acode
com bondadoso peito ao tenro infante.
Qual da torrente que de alpestre fraga
jorrando em catadupas marulhosas
se ala equóreo vapor que o campo orvalha,
15
e em rios dividindo-se, e em regatos
a longes terras nutrimento envia;
assim os sábios, que em teu seio abundam,
manam nome, e saber aos outros povos.
Para teatro de espantosas cenas
20
teu solo assinalou a Providência.
Aqui rompeu esse vulcão terrível,
que o mundo inteiro alumiou co'as lavas,
e à fileira dos reis alçou os homens;
aqui o rei dos reis, terror da Europa,
25
no trono colossal, firme no povo,
honras, louros, e cetros repartia.
O jugo antigo, que a razão curvava,
quebrou, em ti nascido, esse Descartes,
que por novo teor, método novo,
30
sublime estrada abriu à Inteligência.
Malebranche o seguiu, também teu filho.
As boas Artes, do progresso amigas,
filhas da Liberdade, irmãs da glória,
foragidas da Itália, atravessaram
35
Alpes, e Reno, em ti seu templo ergueram.
Paris, citar teu nome é pôr remate
aos elogios teus; eu te venero.
Lições em ti frui; como eu mil outros
brasileiros, que a Pátria hoje adereçam,
40
em ti juvenis passos amestraram.
Da sapiência o brilho ofusca o do ouro;
só de alma estreme a gratidão é paga;
grato te sou no tributar encômios
não lisonjeiros, que a verdade os sela.
45
Arando o crespo Oceano, à Pátria minha
as ciências passaram triunfantes
do santuário teu, nas mãos levando
o archote da razão; ali brilhante
luz difundindo, as trevas sacudiram,
50
que em nossos horizontes negrejavam.
No facundo clarim soa a Verdade;
então do avaro Lusitano as peias,
e as erguidas barreiras rotas caem,
quando Montesquieu, Rousseau troando,
55
as cidades, e os campos repercutem.
Assim de Jericó outrora os muros,
das Hebréias trombetas sons ouvindo,
caem aos pés de Josué submissos.
Então pautando os seus pelos teus passos,
60
mais e mais o Brasil terreno avança
na escala das Nações, que no orbe avultam.
Como da lira consoante vibra
uma corda, quando outra foi ferida,
o Brasil teus triunfos aplaudindo,
65
co'as tuas explosões harmonizando,
assim empeços vence, e igual triunfa.
Oh Brasil, porventura lisonjeiro
serei no meu dizer? Donde te veio
a Ciência das Leis, a Medicina,
70
a Moral, os costumes que hoje ostentas?
Quem te ensinou a perscrutar teus campos,
a pesquisar segredos, que a Natura
em cada verme, em cada flor oculta?
Quem teu gênio subiu ao firmamento,
75
e os mistérios dos astros revelou-te?
Quem a tela, de cores matizando,
mostrou-te retratada a Natureza,
teus heróis, tua história, teus costumes?
Responda a gratidão. -Avulta, oh França!
80
Marcha, prospera; e tu, Brasil, prospera;
estes meus votos são, outros não tenho.
Um povo sempre é filho de outro povo;
um homem sem cultura não avança;
sem ensino os espíritos não brilham.
85
Quem, Paris, sem amar-te pode ver-te?
E quem pode deixar-te sem saudade?
Ah! não beberei mais as eloqüentes
lições, que me apraziam, de teus mestres!
Não verei mais teu Louvre apinhado
90
de maravilhas tantas! Teus colégios,
onde vozes troavam sapientes!
Ainda a mente me pinta os de Sorbonne
vastos anfiteatros coroados
de atenta juventude! -Tudo deixo...
95
Ah! deixo ainda mais, deixo um amigo,
que raros são, e que tão poucos tenho!
Sabes com que pesar te deixo, oh Sales!
Companheiro da infância; às portas, juntos,
da Ciência batemos; ela ouviu-te,
100
abriu-te, e franqueou-te os seus tesouros.
Ainda jovem, da Pátria és já um astro,
que no seu horizonte alto rutila;
eu mísero, fosfórico meteoro
sem nome vago. -E morrerei sem nome?
105
E tu, pintor dos brasilenses bosques,
tu, que em quadros multíplices ao mundo
nossos costumes eloqüente mostras;
venerando Ancião, amigo, e mestre,
por quem já uma vez chorei saudoso,
110
e tu também choraste; hoje de novo
se reproduz tal cena; mas ao menos
tu ficas no teu lar, co'os teus, e eu parto,
parto, não para o meu. Debret, teu nome
comigo eterno irá, como ele eterno
115
passará de uma idade à outra idade.
Adeus, Paris; adeus do mundo empório.
Adeus, Sales, Debret, adeus... Amigo,
que ao teu o meu destino unir quiseste,
hoje a minha saudade igual te punge;
120
não agravemos mais nossos pesares;
vamos, meu Araújo; é tempo, vamos.
À Suíça
depois de em vão correr ingratos montes,
se alfim vê belo pássaro que pousa
sobre um tronco do bosque,
alegre e duvidoso a arma prepara;
5
e quando cuida já que é presa sua,
manso o vê que se escapa, e que desliza
nos leves ares co'as talhantes plumas,
triste, desesperado à casa volta:
ou como terno amante, que de longe
10
o bem-amado avista, passeando
no jardim de seus pais; contente investe,
já em doces idéias engolfado;
e quando perto chega,
e cuida ir desfrutar gratos momentos,
15
ela modesta e temerosa, os olhos
brandamente volvendo, se retira,
e o malfadado deixa
entregue à dor, carpindo-se saudoso;
assim eu, oh belíssima Suíça,
20
viteus montes, teus bosques de pinheiros,
teus campos férteis co'o suor dos homens;
viteu lago tranqüilo, onde se espelha
de cima desse trono de alabastro,
o sol, mal que amanhece faiscante.
25
Assim jovem guerreiro de ouro armado,
no polido pavês atento se olha,
e contempla seu garbo, antes que saia
a discorrer os campos, coruscante.
Vi a tua cidade de Genebra,
30
tão linda como o lírio junto d'água,
tão graciosa como pura virgem,
que a roca empunha, e que meneia o fuso.
vi-te, e meu coração portas abria
ao prazer fugitivo,
35
que mais ligeiro corre que o teu Ródano.
alma alegria a mente me orvalhava,
tão seca de pesares;
e a saudade da Pátria que me punge,
como que adormecida, menos dura,
40
A farpa descansava.
Esquecido de mim, do meu destino,
começava a gozar-te; -e já me foges!
Mas se tu de meus olhos disapareces,
desenhada na mente a imagem tua,
45
jamais consentirei que se esvaeça.
Oh Suíça, oh Genebra, oh país livre!
culta Cítia da Europa, solo honrado
pelos Euler, Rousseau, Haller, e Géssner,
recebe inda este adeus de um estrangeiro;
50
e praza ao céu que o último não seja,
que a ti volte, e te veja uma, e mais vezes.
Genebra, 11 de outubro de 1834
O gênio e a música
À Senhora Catalani
Dos Gênios a importância se conhece
quando, enchendo a missão, desaparecem.
se os rios as campinas fertilizam,
10
os lavradores folgam;
mas extintas as fontes d'alma veia,
atenuam-se os campos,
e a Natureza em torno empalidece;
aos pedregosos, descobertos leitos,
15
o homem chega, e d'água uma só gota,
para a sede aplacar, não acha, e chora;
mas lágrimas a sede não saciam!
então do bem se lembra que gozara,
do bem que já não goza.
20
Quem não respeita o Gênio? Quem não
sente
bater-lhe o coração inopinado,
quando escuta os angélicos acentos
do ser misterioso,
que a Natureza inspira?
25
Na culta Grécia, na guerreira Roma
endeusada a Harmonia cultos teve;
entre bárbaros povos, Galos, Francos,
Celtas, Bretões a música divina
os cruentos costumes adoçava.
30
Nos Brasílios sertões, duros Tamoios,
intrépidos Caités ao som se curvam
da harmonia selvagem;
como divinos, de Tupã mimosos,
seus músicos respeitam.
35
a iluminada Europa
não desdenha entoar sagrados salmos
no Templo do Senhor; atado ao remo
o pescador ao som das vagas canta,
canta o proscrito sobre estranhas plagas,
40
e o peregrino em solitárias selvas.
O canto maternal o infante acalma,
e a cólera dos homens se desarma,
quando escuta suave melodia.
Eis em campo o guerreiro;
45
como brioso marcha, quando troa
a bélica trombeta!
Patrióticos hinos entoando,
sente para o valor estreito o peito.
Entre selvas de lanças, e de espadas,
50
coberto co'uma abóbada de fumo,
através de pelouros sibilantes,
assoberbando a morte,
vai nos braços da glória
arvorar os pendões vitoriosos!
55
Na guerra hinos guerreiros,
na paz canções de amores!
Tanto, oh música, podes sobre os homens,
que em toda parte imperas!
sim, que os Anjos, os céus, o sol, os mares,
60
os vales, as montanhas, as florestas,
aves, brutos, e homens,
e essas centenas de milhões de mundos,
que cadentes vagueiam no infinito,
é um sistema harmônico, perpétuo,
65
em glória do Supremo Ser dos seres!
Rara mulher, tu viste humildes servos
deporem a teus pés dons preciosos,
que os Reis, e os Potentados te enviavam.
Tu viste os próprios Reis, e seus validos,
70
e deles homenagem recebeste.
Viste os povos da Europa arrebatados
aqui e ali ao som de teus acordos,
que embebiam nos seios d'alma o encanto.
Viste, sim viste inúmeras coroas
75
lançadas a teus pés; e prosseguias
ufana a deslizar as sibilinas
dulcíssonas cadências.
eis do Gênio o triunfo!
Glória ao Gênio se dê, perene, eterna!
80
Sobre um leito de rosas, e de louros,
hoje repousas, não no esquecimento,
mas no arroubo da glória:
Como o guerreiro que na paz desfruta,
vendo os despojos dos vencidos povos,
85
grata consolação que a alma embriaga.
Tudo o que te rodeia manifesta
teu imortal renome.
Altares te ergueria a prisca Grécia,
se a prisca Grécia te embalasse o berço.
90
Da própria filha tua a voz canora,
voz que tão alto sobe, e já promete
outro novo milagre de harmonia,
também te louva, e exalta;
que se o nome dos pais herdam os filhos,
95
a glória filial os pais sublima.
Ah! não desdenhes receber louvores
do peregrino incógnito, que passa
por estrangeiras plagas
sem arruído, como o mudo sopro
100
das matutinas, solitárias auras.
Mil vezes proferir ouvi teu nome
no novo, e velho mundo, e jamais pude
augurar-me a ventura
de te ver, de te ouvir, e mais ainda,
105
de receber de ti sinais de estima.
Longe da Pátria o viajor saudoso
bem raras vezes o prazer encontra.
De cidade em cidade andado tenho,
reinos atravessei, cantões, e vilas,
110
vinguei gelados Alpes, e Apeninos,
vales desci sombrios, subi torres,
sempre co'a Pátria minha na lembrança;
como a andorinha que de teto em teto
salta, sem que se esqueça de seu ninho.
115
Tudo da Pátria a idéia me revive,
mas nada me consola;
em parte alguma não achei ainda
um coração de pai, de mãe, de amigo,
que vendo-me partir, pesar sentisse,
120
e ao menos me dissesse: -Deus te guie.
Sublime Catalani, tu me honraste!
Talvez única sejas, que te lembres
do peregrino errante,
quando ele, já na Pátria rodeado
125
dos velhos pais, de irmãos, e dos amigos,
refrescando a memória das viagens,
entre, os que viu, prodígios,
cheio de comoção, citar teu nome,
e dizer: eu a vi; falei com ela!
130
Pago ao Gênio um tributo merecido,
que a gratidão me inspira;
fraco tributo, mas nascido d'alma.
Florença, 20 de novembro de 1834
No álbum da ilustríssima e excelentíssima senhora D. Joana Marques Lisboa
Oh fantasia, oh único refúgio
do mísero proscrito!
Tu, para consolar o peito aflito,
10
os passados prazeres nos retratas;
as pandas asas das prisões desatas,
e pelos pátrios ares deslizando,
que sublimes visões nos vais pintando!
Oh! se é belo, sentado à sombra amiga
15
do pátrio cajueiro
de frutos esmaltado,
onde o saudoso sabiá se abriga,
onde pousa o colibri, e o gaturamo;
se é doce ouvir terníssimo reclamo
20
do lindo coro alado,
da aurora pregoeiro,
que àceleste mansão nossa alma eleva
quanto é mais belo, ausente,
à parca sombra do álamo estrangeiro,
25
ouvindo o rouxinol cantar amores,
da Pátria então lembrar-se,
lembrar-se de um parente,
de um amigo da infância, de um remanso,
onde, fruindo o aroma de mil flores,
30
ao som estrepitoso da corrente,
tantas vezes achamos o descanso
às infantis fadigas!
Oh! como é doce então a alma engolfar-se
nas cenas do passado!
35
Tudo vem ante nós apresentar-se
nesse querido instante!
Nossa alma, entre mil cenas delirante,
ouve a voz da saudade que murmura;
a saudade, a saudade,
40
esse triste prazer que não se explica,
agro prazer de um coração magoado,
prazer que se mistura
com dor, com aflição, saudosa angústia
que nos punge, nos rói, nos vivifica.
45
assim nestas estranhas, longes plagas
se nos antolha a Pátria!
E por ela em cada inverno
de contínuo suspiramos,
e mesmo na primavera
50
inda dela nos lembramos.
Cada quadro nos desperta
a cadeia interrompida
de gratas reminiscências
da nossa passada vida.
55
Assim, assim um dia,
já sob o céu Brasílio,
como um sonho, da Europa a bela imagem
ressurgindo na nossa fantasia,
despertará saudades deste exílio.
60
Então entre mil cenas divagando,
do passado as idéias refrescando,
ante nós se erguerá também Bruxelas,
seus parques, seus jardins, e as torres belas
dos seus templos, e góticos palácios.
65
Então, talvez então, vendo este livro,
que quadros vos recorda tão diversos,
vos lembrareis do errante, jovem vate,
que estes versos traçou, saudosos versos.
Os gratos dias,
70
que aqui gozei,
ante minha alma
sempre os terei.
Os inocentes,
gratos penhores,
75
anjos da terra
encantadores,
que tantas vezes
eu afagava,
e em grato enlevo,
80
os abraçava;
esta harmonia
do par ditoso;
em vós beleza,
amor no esposo;
85
candura em todos,
terna bondade,
dotes sublimes
da Divindade
jamais minha alma
90
olvidará,
e de vós sempre
se lembrará.
Bruxelas, 21 de junho de 1836
- XII -
Adeus à Europa
Adeus, oh terras da Europa!
Adeus, França, adeus, Paris!
Volto a ver terras da Pátria,
vou morrer no meu país.
Qual ave errante, sem ninho,
5
oculto peregrinando,
visitei vossas cidades,
sempre na Pátria pensando.
De saudade consumido,
dos velhos pais tão distante,
10
gotas de fel azedavam
o meu mais suave instante.
As cordas de minha lira
longo tempo suspiraram,
mas alfim frouxas, cansadas
15
de suspirar, se quebraram.
Oh lira do meu exílio,
da Europa as plagas deixemos;
eu te darei novas cordas,
novos hinos cantaremos.
20
Adeus, oh terras da Europa!
Adeus, França, adeus, Paris!
Volto a ver terras da Pátria,
vou morrer no meu país.
Paris, agosto de 1836
FIM