No álbum de uma veneziana
Quisera na minha lira
5
cadenciar algum hino,
com que louvasse os encantos
desse teu rosto divino.
Mas temo, temo que o peito,
de gemer já fatigado,
10
em vez de cantar, exale
um suspiro magoado.
Ah! temo, temo, acredita,
que a minha fúnebre lira,
em vez de entoar um hino,
15
só triste nênia desfira.
Ah! tu cuidas, bela virgem,
que é feliz todo o vivente?
Inda estás no albor da vida,
tens uma alma inda inocente.
20
Não; tu me vês peregrino,
errando de terra em terra:
Mas, oh virgem, tu não sabes
que dor o meu peito encerra.
Veneza, maio, 1835
A meu amigo D. J. G. de Magalhães
Pode o parto de um gênio em febre intensa
rivalizar tais cenas?
Ver das águas a queda ruidosa
deslizar entre seixos, formando
5
de cristal mil festões, que se esmaltam
da palheta do íris, pintando
retab'los, onde o toque da mão mestra
em matiz variado delineia
sucessivas belezas, como a idéia,
10
que outra idéia desperta, vinculando
das sensações o quadro reanimado;
onde terna saudade em ledo arroubo,
volteia esperançosa
sobre as asas divinas da memória,
15
que em seu grêmio renova eras passadas;
misteriosa fênix de nossa alma!
Propércio e Cíntia,
Catulo, Horácio,
mecenas, tudo
20
do antigo Lácio
patente sobre as ruínas vejo errarem,
como nuvens de fósforo cerúleo,
ou vapores num lago, matutinos,
ou nas selvas noturnos pirilampos.
25
E tu, oh linda Zenóbia,
que com teu pranto nutriste
estas águas sempiternas,
e solitária carpiste
tua coroa, teu cetro,
30
armadas, marmóreos paços,
vastos templos de Palmira,
que Roma fez em pedaços.
Já foste Paládio, e ídolo
do teu povo soberano;
35
mas quebrou-te o templo, as aras,
o iconoclasta Romano.
Vem, princesa desgraçada,
vem solitária comigo,
vem chorar a antiga glória,
40
que eu também choro um amigo.
Se ora invoco teus manes neste ensejo,
não turbo as régias cinzas, que humilhadas
no exílio findaram sem momento.
Como tu, solitário a vida gemo,
45
e a passada ventura, que gozara,
entre amicais amplexos, venturoso.
Mas que voz na soidão remonta aos ares?
Celeste Querubim baixa do céu,
e na flauta divina exalta o hino,
50
que a terra a Jeová diurna envia.
Mas não; alto prodígio se levanta;
providente Natura
companheiro me envia; alado vate,
Homero da floresta,
55
em melódico metro, o estro exalça,
meus suspiros conforta, adoça as mágoas.
Salve, oh vate Rouxinol,
salve, à luz misteriosa
deste archote, que de noite
60
faz a terra duvidosa.
Salve, oh Lua alvinitente,
mãe de amor, do vate amante,
do silêncio grata esposa,
salve, salve neste instante!
65
Mas quem turba teu manto de silêncio,
e a voz levanta em prolongado ronco?
São as do Anio
tartáreas águas,
que sempre vivem
70
quais minhas mágoas.
Da história imagem,
das estações
vivo retrato
seus borbotões;
75
qual vida, e morte,
de vaga em vaga,
se esconde, e surge,
se acende, e apaga.
Assim batem as águas rugidoras,
80
que os átomos confundem, dilatando
a contínua torrente, que retrata
do infinito a imagem!
Onde está o infinito, oh Deus Eterno?
Esse marco onde esbarra a mente humana,
85
que sem tino volteia titubante,
e no abismo do peito se aprofunda,
face a face encontrando a consciência?
Oh consciência, ao teu clarão se rasga
o véu das ilusões! Ele nos mostra
90
das paixões o troféu dentro do túmulo,
e ao pé quadro da vida, que demonstra
o nada da vaidade, e o desengano
majestoso sentado
na cadeira da escola da verdade,
95
donde colhe a virtude os seus ditames!
Pálida Lua, teus suaves raios,
que plácidos se esbatem nas campinas,
e as fugitivas ondas argenteiam,
da consciência nossa a imagem pintam,
100
que fala ao coração com tal potência,
sem nos lábios volver um som de frase.
Misterioso acento, alta harmonia
desenvolve a Natura em seus concertos.
Enquanto a voz uníssona do Anio,
105
que em equóreos cilindros vai rolando,
e entre seixos ribomba,
de medonho fragor o ar pejando;
canoro rouxinol prelúdio exalta,
e sublime se acorda ao som horrível,
110
que as águas tangem em contínuos
vórtices
entre o limo, e as areias das cavernas,
variando as estrofes; lá prolonga
suavíssimo gorjeio, que se perde
em ventrílocos ecos; quais soluços
115
de enamorada virgem, que receia
do coração trair ternos afetos.
Volve a paz, o silêncio, ronca a onda
em perpétuo murmúrio;
da fadiga repousa alado vate,
120
e inspirada canção alto redobra.
Mais sublime retoma o retornelo,
em agudos sibilos elevando-se;
quebra a voz; vem morrendo suspiroso;
doce, e doce remonta, enche o espaço;
125
majestoso se espraia, floreando;
qual rojão que remonta além das nuvens,
e no ar arrebenta um firmamento
de efêmeras estrelas luminosas.
Volve a paz, o silêncio, ronca a onda
130
em perpétuo murmúrio;
da fadiga repousa alado vate,
e inspirada canção alto redobra.
Melancólico entoa em nova escala
amorosa canção, que invejam dúlias:
135
té que alfim tiritando se arrebata,
entrecorta o trinado, e pouco a pouco
em fluente florido se evapora.
Volve a paz, o silêncio, ronca a onda
em perpétuo murmúrio;
140
da fadiga repousa alado vate,
e inspirada canção alto redobra.
Mesclado efeito de sublimes notas,
ora forte, ora lento vai soltando;
finge o pranto, sorri-se, e desenvolve
145
insólita harmonia, que assimilha
batalhões com clarins, rufos, e tímbalos;
emaranha um confuso regorjeio,
que se perde num som prolongadíssimo.
Triunfante cala a cítara,
150
desaparece qual relampo;
ronca a onda sempre a mesma,
e o silêncio toma o campo.
Oh Rossini das aves, tu que buscas
a soidão, o silêncio,
155
pra teu canto esmaltar sem o marulho
da vigília do dia; e como um gênio,
que no leito desdobra mil prodígios
ao cansado mortal em grato sonho,
nesta hora me recordas
160
ao coração lanhado imagens ternas,
tão tristes, que ante mim se desenrolam
qual penacho de fumo
de apagado brandão junto ao esquife,
que um cadáver de virge'avaro oculta.
165
Oh Rossini das aves, que linguagem
teu discurso soltou? Não é da terra.
Ah! cantas porventura
os fastosos anais, a decadência,
os triunfos, e a queda dos Romanos?
170
A saudade, as delícias da amizade,
ou a história amorosa de uma vítima?
Marmóreos átrios, áureos peristilos,
conquistas dessa indústria, que assoberba
a terra, o mar, os montes, e os abismos,
175
tudo o tempo desfez co'a mão dos séculos.
Sibilinas paráfrases
de místicos oráculos,
que o futuro previam, não previram
essa mãe de desastres
180
cimitarra de Totila,
que a Palestra, o Ninfeu, a Academia,
e mais d'arte primores derrocara
nesse mundo do belo, que Adriano
colocara engenhoso sobre a encosta
185
das ridentes colinas, que te adornam,
oh decantada Tibur!
Qual túmulo sagrado, o viajante
vem teu solo beijar, e espavorido
desses restos augustos que te cobrem,
190
vai na pátria narrar tais maravilhas,
maldizendo a ignorância, e Caracala.
Esta, outrora soberba, áurea cidade
minha imagem retrata em quadro icônico!
Onde está teu Liceu, onde o teu Foro?
195
Os teus templos, e muros formidáveis?
Que sepulcro encerrou os Paladinos?
Eleva, eleva moles gigantescas,
pelo gênio das artes inventadas,
oh vaidoso mortal! marca os teus fastos
200
com marmóreos padrões; que o dia chega
em que, a um leve aceno do destino,
com teus paços irás dormir na terra.
Novos combros de areia gera um vento,
que outro vento derruba, nivelando-os.
205
Muros reticulares
de calcinada argila,
que arrendadas abóbadas sustentam,
de grinaldas de amoras adornados,
em vão querem mostrar primeva pompa.
210
Onde outrora tangeu Horácio a lira,
e Tibulo chorou ternos amores,
mortais serpes se enroscam,
aguardando findar pastor incauto,
que a fadiga do sol chama ao repouso.
215
Sobre o alto das colinas,
que em torno ao Anio vecejam,
vis choupanas, restos sacros,
inda glória mal lampejam.
Teus acantos de Corinto,
220
e o teu luxo oriental,
jazem na terra, e aos insetos
servem hoje de pousal.
Mas, oh Deus, se a vista volvo
ao Catilo, e suas águas,
225
lá no templo da Sibila
vão findar as minhas mágoas.
Supina Tibur, espraia
no horizonte larga vista,
vê como geme na terra
230
a Rainha da conquista.
Como tu, mudei de aspecto;
já me viste rico, ufano,
quando junto ao meu amigo
te saudei lá do Lucano.
235
Onde vás, Peregrino estudioso?
Em que albergue feliz pedes pousada?
Acaso sobre um túmulo deserto
entre rotos sofitos,
na cítara brasília merencório
240
teus suspiros a Deus grato sublimas?
E baixando ao amigo, também sentes
no ádito do peito,
como ele, trespassar-te agra saudade,
que fere o coração, e ilude a mente?
245
Se a mansão de Petrarca,
nas Colinas Euganeas, visitares,
no marmóreo portal grava estas linhas:
«Se junto, ou longe
da Laura diva
250
a lira altiva
tangeste sempre:
Qual tu, o amigo
sSaudoso agora,
de mim se lembra,
255
e por mim chora.»
Tivoli, maio de 1835
Em resposta a meu amigo M. de Araújo Porto Alegre
mas do céu as estrelas rutilantes
com branda luz os ares perfumavam;
e nas águas azuis, dormentes águas,
que Veneza circulam com cem braços,
5
os celestes fanais, e a casta lua
suas belas imagens balançavam.
outro céu esse lago parecia.
Eram dous céus! Veneza em meio estava,
como um astro que parca luz emana.
10
O leão de São Marcos inda eu via;
a torre esbelta, o gótico palácio,
e a ponte dos suspiros.
Mas tudo, tudo
deixar devia,
15
antes que o dia
amanhecesse,
e desfizesse
quadro tão belo.
A mão do escravo
20
obediente
maquinalmente
já martelava
o fatal bronze;
pancadas onze
25
o ar vibrava.
Triste e choroso
teus versos lia,
e de saudade
me enternecia.
30
Teus versos lendo,
fantasiava
que te escutava;
e que assentado
inda a meu lado
35
te estava vendo.
Já para responder-te preparado
a amizade invocara,
e cravados no céu os olhos tinha.
Mas a hora fatal gelou-me o arroubo!
40
Alerta o gondoleiro me esperava;
partir... deixar Veneza era forçoso.
Co'os teus versos nas mãos, tu em minha alma,
na gôndola pus pé; saudei Veneza;
e co'os olhos em lágrimas nadando:
45
Adeus, Veneza, eu disse,
adeus, adeus, marítima cidade;
decaída Rainha do Adriático.
Eu suspirava ainda;
a gôndola do cais se ia afastando,
50
e do grande canal sulcando as águas,
quando vozes ouvi: era o barqueiro,
que ao compasso do remo recitava,
com monótona voz, porém saudosa,
to vate de Sorrento os doces carmes.
55
Tudo então repousava;
veneza ao longe iluminada eu via,
como um céu estrelado.
O esquife brandamente deslizava,
as sonolentas águas despertando,
60
qual negro mergulhão de argênteo rostro,
ou qual cisne de luto revestido.
Por que tão curta foi noite tão bela?
Ah! quem nunca deixou pátrias devesas,
quem de um amigo não chorou a ausência,
65
nem de uma amante a perda,
gozar não pode em solitária noite
esta doce impressão, que alma sufoca.
Tomei terra em Fusina;
arqua deixei, onde habitou Petrarca;
70
ábano, que por ser de Lívio pátria,
ainda hoje se ufana;
e na crastina aurora saudei Pádua,
ao som da melodia encantadora,
que ao sol nascente o rouxinol tributa.
75
Pela segunda vez vi seus palácios,
seu templo semi-árabe, que outrora
de Antônio repetiu sacros acentos.
Visitei de Vicenza os monumentos.
Em Montebelo recordei prodígios
80
do armipotente Lannes.
Eis-me em Verona alfim, oh caro amigo!
Já vi seus mausoléos,e o anfiteatro,
que Roma, e o Coliseu me está lembrando;
o Coliseu, que juntos vezes tantas
85
ao triste albor da lua visitamos!
Tudo a memória,
doce tormento,
neste momento,
me está narrando,
90
sem omissão;
e a cada folha
da nossa história,
que vai passando,
pungente espinho
95
me vai varando
o coração.
Sempre a teu lado
vivi contente;
a ti ligado,
100
uma vontade
só nos unia;
vera amizade
nos apertava.
Se triste estava,
105
tu me alegravas;
em ti vivia,
contigo ria.
Se me dizias:
sou teu amigo,
110
eu como um eco
te repetia.
Era um exemplo
nossa união.
Mas quis a sorte,
115
sempre inimiga,
atormentar-nos,
e separar-nos
por algum tempo;
desde esse instante
120
a dor pintou-se
no meu semblante;
mas só a morte
dará um corte
ao laço santo,
125
que nos prendeu;
se poder tanto
o justo céu Lhe concedeu.
Vai, meu suspiro,
vai ver o amigo,
130
que te deseja
no seu retiro.
À Roma adeja,
deixa-a, e te inclina
à Palestrina;
135
chega ao abrigo
onde ele pousa;
aí repousa,
suspiro meu.
Verona, 12 de maio de 1835
Por que estou triste?
Ah! não me inquiras... Se chegar tu podes,
5
ao través de meus olhos, à minha alma,
verás que o rosto meu assaz explica
o que nela se passa.
Dirás, talvez, que injusto me lastimo;
qu'inda possuo um pai, qu'inda mãe tenho,
10
qu'inda um amigo aperta-me em seus braços,
e proscrito não erro.
Mas que importa tesouros tais possua,
se gozá-los não posso? Se na ausência,
da saudade o farpão continuamente
15
o peito me trespassa?
De gota em gota o matutino rócio
enche, e pende do lírio o débil cálix,
que oprimido co'o peso se lacera,
desbota, e alfim falece.
20
Uma gota após outra um lago forma,
novas gotas de chuva o lago aumentam,
transborda enfim, e dá a um rio origem,
que nas planícies rola.
Eis de meu coração a fida imagem.
25
Repetidos pesares pouco a pouco,
males amontoados desde a infância
a existência me azedam.
Procuro embalde no festim da vida
um lugar para mim. Se uno meu canto
30
ao hino de alegria, a voz me falta,
e o coração suspira.
Oh Ancião de Téos, feliz foste;
por amores contavas os teus dias!
Dias ditosos! Eu os meus numero
35
só pelos meus pesares.
Mal vibravas da lira os fios de ouro,
para de heróis cantar preclaros feitos,
em vez de ressoar de Atride o nome,
amor, dizia a lira.
40
E eu, oh destino! se de Amor intento
terno o nome entoar, rebelde a lira
só suspiros exala, e as cordas gemem
ao toque de meu dedo.
Suspirar, suspirar... Tal é meu fado!
45
Por que o céu fez-me assim? Ao céu pergunta,
por que deu ele ao sol ígneos fulgores,
e palidez à lua?
Enquanto o sabiá doce gorjeia,
gemem na praia as merencórias ondas;
50
e ave sinistra, negra esvoaçando,
agoureira soluça.
Ao lado do cipreste verde-negro,
desabrocha a corola purpurina
a perfumada rosa; e junto dela
55
pende a roxa saudade.
Eleva-se a palmeira suntuosa,
e desdobra nos ares verdes leques,
e perto da raiz, à sombra sua,
definha humilde arbusto.
60
Eis da Natura o quadro! Isto harmonia,
isto beleza, e perfeição se chama!
Eu completo a harmonia da Natura
co'os meus tristes suspiros.
Vê agora se à lei posso eximir-me
65
que a suspirar me obriga?... Oh alma minha,
arpeja a que possuis, única fibra,
exala teus suspiros.
Turim, 15 de maio de 1835
A flor suspiro
A forma esbelta
termina em ponta,
10
como uma lança
que ao céu remonta.
Assim, minha alma,
suspiros geras,
que ferir podem
15
as mesmas feras.
É sempre triste,
ensangüentado,
quer seco morra,
quer brilhe em prado.
20
Tais meus suspiros...
Mas não prossigas,
ninguém se move,
por mais que digas.
A experiência
De tropeço em tropeço vai-se a vida,
como o rio entre seixos se despenha;
5
nada o curso lhe tolhe.
Das paixões o marulho estrepitoso,
como o som da cascata caudalosa,
cobre, abafa teu eco.
Em jogo pueril, vendando os olhos,
10
o infante, na planice, embalde ensaia
da estrada andar em meio.
Ângulos forma; alfim se esbarra a um tronco;
assim andamos nós olhivendados
pela estrada da vida!
15
Cai-nos a venda do barranco às bordas,
quando nas suas lúbricas crateras
já nossos pés deslizam.
Vem a velhice, que melhor te escuta,
refletimos então; porém que importa!
20
O tempo é já passado!
Do que serve ao cadáver o remédio?
um mestre ao moribundo? um guia àquele,
que marcha ao cemitério?
Os suspiros da pátria
Que distância eles venceram?
5
Que longos mares passaram?
Que ventos atravessaram,
para aqui virem morrer?
Estes tão tristes suspiros
aqui não foram nascidos;
10
não; suspiros tão doídos
quem podia aqui gerar?
Só uma mãe malfadada,
que vê seus filhos lutando,
nos céus os olhos fitando,
15
assim pode suspirar.
Numa praia solitária
bate a vaga moribunda
menos triste e gemebunda,
pejando o ar de seus ais.
20
Vós, gemidos dos desertos,
entre as folhas vagueando,
nas cavernas ululando,
tanto horror vós não causais.
Suspiros, donde vindes? -Mal vos ouço,
25
em meu peito murmura o eco vosso
surdo, funéreo, como a voz que soa
longe no ermo, da enchente que se arroja
de alpestre rocha, em borbotões fervendo,
e se esconde da terra nas entranhas;
30
e minha alma estremece apavorada,
como de uma harpa a corda magoada.
Suspiros, donde vindes? -Sois da Pátria?
Ah! sois da Pátria... Sim, eu vos conheço
por esse acento de aflição, de
angústia,
35
por esta dor, que me causais, tão agra.
Tu suspiras, oh Pátria!
Co'os teus os meus suspiros se misturam.
E que al fazer eu posso?
Se é surda a Providência às preces tuas,
40
que pode a frágil mão de um filho
inútil?
Os teus suspiros
a mim chegaram,
e me abalaram
o coração.
45
Socorro dar-te
embalde intento,
e só aumento
minha aflição.
Qual naufragante
50
que uma onda impele,
outra o expele
ao alto-mar;
e de onda em onda
sendo rolado
55
já lacerado,
vai encalhar.
Mas na praia não achando
um asilo protetor,
o alento último exala,
60
e a alma envia ao Criador.
Assim morreis, suspiros, em minha alma,
depois de haver o Oceano magoado.
Mas, oh Pátria, quem causa mágoas tuas?
Ah! não fales, não digas... sofre... espera.
65
Eu conheço teu mal. Ah! não são estes,
qu'inda os pulsos têm lívidos dos ferros,
recém-livres, costumes têm de escravos,
estes não são, que ao teu porvir brilhante
as portas abrirão; são os seus filhos.
70
Espera, espera, que o porvir é grande;
e a vontade do Eterno, que os teus montes,
o teu céu, os teus rios nos revelam,
será cumprida um dia: espera, espera.
Ainda ontem te ergueste de teu berço;
75
mal um passo ensaiaste,
e não é crível que amanhã já
morras.
Como em torno do sol os astros giram
em círculo perpétuo,
em torno do seu Deus as Nações marcham,
80
e de tal Astro à luz jamais se eclipsam;
crê em Deus; que ele só salvar-te pode.
E vós, que a fronte ergueis de nós à
cima,
vós, que empunhais da governança o leme,
vós, que velar deveis, até quando
85
fareis da Pátria o patrimônio vosso,
e tolhereis seus passos?
Corai, corai de pejo, envergonhai-vos
de encher o excelso assento de poeira,
de poeira que sois, que um leve sopro
90
dispersa, e acaba, e nem vestígios deixa
para o crástino dia.
Nulidades, que humanas formas cobrem,
empolas, que se geram num minuto,
e que noutro minuto se desfazem,
95
como bolhas de espuma, que brincando,
de tênue tubo o infante cair deixa,
e no meio da queda desaparecem;
que fizestes, que em vossa glória fale?
Nada!... Passastes como secas folhas,
100
que os ventos remoinham.
Basta, enfim basta de ilusão, de engano.
mira a Pátria a grandeza;
vós a empeceis; deixai o campo livre
à Juventude, do progresso amiga.
105
Eu vos saúdo, Geração futura!
Só em vós eu confio.
Crescei, mimosa planta,
sobre a terra da Pátria só regada
com lágrimas e sangue.
110
crescei, crescei da liberdade, oh filhos,
para a Pátria salvar, que vos aguarda.
O homem probo Evaristo Ferreira da Veiga
Tudo está profanado!
Levanta a estupidez a hirsuta coma
coberta de poeira,
e a sacode no rosto da Ciência,
10
ou no alcáçar da lei se assenta ufana;
a Moral a seus pés serve de sólio,
de cúpula o capricho.
Tudo está profanado!
A cívica coroa
15
dá-se à ambição, que sobe
intumescida
como a onda do mar, e tudo alaga.
Exauriram-se os nomes das virtudes,
e um só não há que ao crime se não
desse.
Os lugares são prêmios da baixeza,
20
da feia adulação, da vil intriga!
O hino cantam da vitória; e a Pátria
geme aflita co'o peso da ignorância
dos homens, cuja estrela é o egoísmo;
e até a lira, para mor opróbrio,
25
vendidos sons só verte!
Tudo está profanado!
Como posso louvar-te, ilustre Veiga,
santuário da honra foragida?
Que nome te darei? que flor? que incenso?
30
Como o bronze que soa em torre excelsa,
chamando a Deus os homens,
tu bradaste, pregaste o amor da Pátria;
a teus brados os homens surdos foram,
e tu enrouqueceste.
35
Apóstolo da ordem,
caíste, enfim caíste! -Mas com glória!
Caíste, mas sem nódoa! Sim, caíste!
Mas Sócrates também sofreu a morte!
Qual se vê nas cidades arrasadas,
40
o templo solitário, esparsos bustos,
rotas colunas, capitéis dispersos,
combros de terra, montes de ruínas;
e no meio, inda envolta de poeira,
uma estátua, que o tempo respeitara,
45
e que os olhos atrai do peregrino;
assim te eu vejo em pé! e assim um dia
a geração futura, pesquisando
no meio das relíquias desta idade
alguma cousa inteira, pura e bela,
50
sacudirá o pó, que hoje te lançam,
e dirá: Eis aqui um Homem probo.
Mas que digo? -Ainda vives!
Envenena-se a flor, se a serpe a morde,
e a virtude definha, conculcada!
55
Mas tu amas a Pátria, como eu amo;
amas com amor puro,
sem mescla de interesse, como se ama
uma mãe terna, que não tem tesouros,
mas só lágrimas tem para legar-nos.
60
Ah! praza ao céu que a estrada em que brilhaste,
seja aquela em que morras.
A Bíblia em um dia de tristeza
De gota em gota o fel da desventura
n'alma a tristeza vai-nos embebendo,
5
té que o corpo converte-se em masmorra,
de que a alma fugir busca.
Oh! quem vê uma flor que em prado brilha,
parecendo exalar vida, e doçura,
e rir-se em cada pétala viçosa,
10
acaso dizer pode
se ela foi pela serpe inficionada?
Se em vez de vida, a morte só lhe lavra
o delicado estame?
Quem pode ver o formigueiro oculto,
15
que o humano coração rói, e lacera?
Se eu sofro, ou não, só eu, só Deus o
sabe.
mas feliz quem nos seios de sua alma
acha uma grande idéia que o consola,
como uma taça de suave néctar,
20
que lhe acalma as entranhas sequiosas.
Quem se resigna à dor não sofre tanto.
que veneno aí há que um bem não
faça?
Ou que remédio que não cause um dano,
segundo o caso, e leve circunstância,
25
que à vista perspicaz escapa às vezes?
Não, não és tu, Filosofia humana,
quem me robora o peito!
Sábias lições de sofrimento ditas;
mas o valor acaso dar tu podes?
30
Quantas vezes o mal frustra a ciência!
pura fonte conheço, inexaurível,
onde sempre o infeliz adoça as dores.
Livro sagrado,
vem consolar-me,
35
vem saciar-me
na minha dor.
Meu peito ansiado
de ti carece,
sem ti falece
40
o meu vigor.
A ti recorro
triste e sedento,
que este tormento
me faz gemer.
45
Dá-me socorro
no mal extremo,
vem, senão temo
à dor ceder.
Cada palavra,
50
que me vás dando,
é qual um brando,
suave mel.
Já em mim lavra
a paz do empíreo;
55
do meu martírio
se adoça o fel.
Julho de 1836
Oferece o autor o Cântico de Waterloo
as cinzas de outro herói? Quem melhor que ele
pode dar o valor aos grandes feitos?
Tu vás a Waterloo; tu vás sentar-te
aos pés desse leão, que as mãos dos
homens
5
sobre vasta pirâmide elevaram,
para narrar às gerações futuras
raros prodígios da potência humana.
Intrépido soldado peregrino,
que depois de salvar Itaparica,
10
guardaste na bainha a espada ufana,
e as ciências cultivas incansável;
a teus olhos, de ver insaciáveis,
já vai a terra parecendo estreita!
Se te é grato escutar os sons da lira;
15
se tu, que viste de Virgílio o túmulo,
de Horácio a casa, e a casa de Mecenas,
podes com gosto murmurar meus versos,
este cântico aceita, que te ofreço
em sinal de respeito, e de amizade.
20
Napoleão em Waterloo
Tout n'a manqué que quand tout avait réussi.
Napoleão em S. Helena (Memorial)
o Meteoro fatal às régias frontes!
E nessa hora em que a glória se obumbrava,
além o sol em trevas se envolvia!
Rubro estava o horizonte, e a terra rubra!
5
dous astros ao ocaso caminhavam;
tocado ao seu zênite haviam ambos;
ambos iguais no brilho, ambos na queda
tão grandes como em horas de triunfo!
Waterloo!... Waterloo!... Lição sublime
10
este nome revela à Humanidade!
Um Oceano de pó, de fogo, e fumo
aqui varreu o exército invencível,
como a explosão outrora do Vesúvio
até seus tetos inundou Pompéia.
15
O pastor que apascenta seu rebanho;
o corvo que sanguíneo pasto busca,
sobre o leão de granito esvoaçando;
o eco da floresta, e o peregrino
que indagador visita estes lugares:
20
Waterloo!... Waterloo!... dizendo, passam.
Aqui morreram de Marengo os bravos!
Entretanto esse Herói de mil batalhas,
que o destino dos Reis nas mãos continha;
esse Herói, que co'a ponta de seu gládio
25
no mapa das Nações traçava as raias,
entre seus Marechais ordens ditava!
O hálito inflamado de seu peito
sufocava as falanges inimigas,
e a coragem nas suas acendia.
30
Sim, aqui stava o Gênio das vitórias,
medindo o campo com seus olhos de águia!
O infernal retintim do embate de armas,
os trovões dos canhões que ribombavam,
o sibilo das balas que gemiam,
35
o horror, a confusão, gritos, suspiros,
eram como uma orquestra a seus ouvidos!
Nada o turbava! -Abóbadas de balas,
pelo inimigo aos centos disparadas,
a seus pés se curvavam respeitosas,
40
quais submissos leões; e nem ousando
tocá-lo, ao seu ginete os pés lambiam.
Oh! por que não venceu? -Fácil lhe fora!
Foi destino, ou traição? -A águia
sublime
que devassava o céu com vôo altivo
45
desde as margens do Sena até ao Nilo,
assombrando as Nações co'as largas asas,
por que se nivelou aqui co'os homens?
Oh! por que não venceu? -O Anjo da glória
o hino da vitória ouviu três vezes;
50
e três vezes bradou: -É cedo ainda!
A espada lhe gemia na bainha,
e inquieto relinchava o audaz ginete,
que soía escutar o horror da guerra,
e o fumo respirar de mil bombardas.
55
Na pugna os esquadrões se encarniçavam;
roncavam pelos ares os pelouros;
mil vermelhos fuzis se emaranhavam;
encruzadas espadas, e as baionetas,
e as lanças faiscavam retinindo.
60
Ele só impassível como a rocha,
ou de ferro fundido estátua eqüestre,
que invisível poder mágico anima,
via seus batalhões cair feridos,
como muros de bronze, por cem raios;
65
e no céu seu destino decifrava.
Pela última vez co' a espada em punho
rutilante na pugna se arremessa;
seu braço é tempestade, a espada é
raio.
Mas invencível mão lhe toca o peito!
70
E' a mão do Senhor! barreira ingente
basta, guerreiro! Tua glória é minha;
tua força em mim stá. Tens completado
tua augusta missão. -És homem;- pára.
Eram poucos, é certo; mas que importa?
75
Que importa que Grouchy, surdo às trombetas,
surdo aos trovões da guerra que bradavam:
Grouchy, Grouchy, a nós, eia, ligeiro;
O teu Imperador aqui te aguarda.
Ah! não deixes teus bravos companheiros
80
contra a enchente lutar, que mal vencida
uma após outra em turbilhões se eleva,
como vagas do Oceano encapelado,
que furibundas se alçam, lutam, batem
contra o penedo, e como em pó recuam,
85
e de novo no pleito se arremessam.
Eram poucos, é certo; e contra os poucos
armadas as Nações aqui pugnavam!
Mas esses poucos vencedores foram
em Iena, em Montmirail, em Austerlitz.
90
Ante eles o Tabor, e os Alpes curvos
viram passar as águias vencedoras!
E o Reno, e o Manzanar, e o Adige, e o Eufrates
embalde à sua marcha se opuseram.
Eram os poucos, que jamais vencidos
95
os dias seus contavam por batalhas,
e de cãs se cobriram nos combates;
o sol do Egito ardente assoberbaram,
a peste em Jafa, a sede nos desertos,
a fome, e os gelos dos Moscóvios campos.
100
Poucos que se não rendem; -mas que morrem!
Oh! que para vencer bastantes eram!
A terra em vão contra eles pleiteara,
se Deus, que os via, não dissesse: Basta.
Dia fatal, de opróbrio aos vencedores!
105
Vergonha eterna à geração que insulta
o Leão que magnânimo se entrega.
Ei-lo sentado em cima do rochedo,
ouvindo o eco fúnebre das ondas,
que murmuram seu cântico de morte.
110
Braços cruzados sobre o largo peito,
qual náufrago escapado da tormenta,
que as vagas sobre o escolho rejeitaram;
ou qual marmórea estátua sobre um
túmulo.
Que grande idéia o ocupa, e turbilhona
115
naquela alma tão grande como o mundo?
ele vê esses Reis, que levantara
da linha de seus bravos, o traírem.
Ao longe mil pigmeus rivais divisa,
que mutilam sua obra gigantesca;
120
como do Macedônio outrora o Império
entre si repartiram vis escravos.
Então um riso de ira, e de despeito
lhe salpica o semblante de piedade.
O grito ainda inocente de seu filho
125
soa em seu coração, e de seus olhos
a lágrima primeira se desliza.
e de tantas coroas que ajuntara
para dotar seu filho, só lhe resta
esse Nome, que o mundo inteiro sabe!
130
Ah! tudo ele perdeu! a esposa, o filho,
a pátria, o mundo, e seus fiéis soldados.
Mas firme era sua alma como o mármore,
onde o raio batia, e recuava!
Jamais, jamais mortal subiu tão alto!
135
ele foi o primeiro sobre a terra.
Só, ele brilha sobranceiro a tudo,
como sobre a coluna de Vendôme
sua estátua de bronze ao céu se eleva.
Acima dele Deus, -Deus tão-somente!
140
Da Liberdade ele era o mensageiro.
Sua espada, cometa dos tiranos,
foi o sol, que guiou a Humanidade.
Nós um bem lhe devemos, que gozamos;
e a geração futura agradecida:
145
NAPOLEÃO, dirá, cheia de assombro.
18 de junho de 1836
Ao general Lafaiete
onde da independência o livre sopro
os homens vivifica;
onde de azul cetim num céu sem nódoa
lúcido gira o disco coruscante,
5
que ao vate o gênio inflama;
sem que do medo a destra me agrilhoe,
porém venerabundo, a mente exalço
ao herói de dous Mundos.
Tu, da glória no céu, não dado a
muitos,
10
rutilas fulgurante a par de Washington,
co'a luz que a liberdade
de seu divino rosto escapar deixa,
qual cometa fatal à tirania.
Oh grande Lafaiete!
15
Oh portentoso nome! honra da França!
Nome, que no orbe cresce, como em bosques,
altos, frondosos cedros
nos alcantis do Líbano se elevam,
e as tormentas, e os raios assoberbam
20
contra eles fulminados.
De nós aprenderão os filhos nossos
a repetir teu nome, ainda no berço,
com inocentes lábios;
nossos filhos aos seus, estes aos netos
25
irão passando intacta esta lembrança;
como através dos evos
as colossais pirâmides, que emblemas
são da grandeza, e da existência eterna,
ovantes têm passado.
30
Mas é grande ardimento! Ave sem canto,
longe de seu vergel peregrinando,
em remontado vôo
querer modular sons, cantar teu nome!
Simpática afeição, mágico
impulso
35
a ti porém me arrasta;
e de prazer o coração no peito
expande-se a teu nome, qual se expande,
em perfumado eflúvio,
o doce aroma do ananás gostoso.
40
E tu, qual prazer sentes, quando tomas
esse infante em teus braços?
Esse infante gentil, de heróis
progênie,
filho de Zenowiez, hoje sem Pátria
que um Déspota roubou-lha?
45
Qual te anima alegria esperançosa,
quando de Kosciuszko vês o sangue
girar em suas veias,
e as estranhas nutrir-lhe ainda tenras?
Oh! como é grato levantar nos braços
50
o filho de um guerreiro,
que malfadado sim, mas virtuoso,
sobranceiro se mostra à sorte adversa!
Ah, praza a Deus clemente
que por ti embalado esse menino,
55
por ti n'água lavado do batismo,
raro exemplo seguindo
de seus nobres maiores, seja um dia
o que foi Kosciuszko, e o que tens sido.
Oh! se o porvir contemplo,
60
quem sabe se ainda um dia!... Mas não podem
humanas mãos romper o véu de trevas,
com que a Providência
esconde a mortais olhos o futuro.
Em sibilino arrojo não pretendo
65
interpretar mistérios.
Cresça o jovem Emílio sempre ao lado
do imortal Lafaiete, e aprenda, e saiba
amar a liberdade.
Paris, janeiro de 1834
Às senhoras brasileiras
Os risos fagueiros do Gênio da Pátria
5
agora me inspiram idéias suaves.
Os vossos encantos, oh belas patrícias,
eu canto dulcíssono.
Império das graças, oh sexo mimoso,
vós sois o princípio da nossa
existência;
10
dos nossos prazeres orige' inefável;
sem vós que seríamos?
A lua que brilha num céu azulado,
e os raios argênteos no rio reflete,
é quadro bem lindo! porém vossas faces
15
têm graças mais nítidas.
Os dias que alegres convosco passamos,
são horas bem curtas, são breves instantes;
e os breves instantes da ausência saudosa
são noites bem tétricas.
20
O canto das aves, que soa nos bosques,
é grato aos ouvidos do homem selvagem;
porém vossas vozes têm mais melodia
que as vozes dos pássaros.
A rosa tem cheiro que o ar embalsama,
25
a rosa tem cores que esmaltam os prados;
porém para imagem da vossa beleza
a rosa é inválida.
As águas têm perlas, o céu tem estrelas,
os campos têm flores, a terra tem ouro;
30
mas vós venceis tudo; vós sois da Natura
a obra protótipa.
Por vós afinaram mil vates as liras;
por vós mil guerreiros à glória voaram;
e até nações cultas por vós
sacudiram
35
seu jugo tirânico.
Oh Anjos da terra, da Pátria ornamento,
donzelas, esposas, e mães carinhosas,
na luta, que temos co'o vil despotismo,
mostrai-vos magnânimas.
40
Os vossos encantos de prêmio só sirvam
a quem ama a Pátria, ao sábio, e ao justo.
Deixai que ociosos, e os nossos imigos
no lodo revolvam-se.
1831
A minha lira
Co'a Grécia, e Roma sonhando,
5
colhendo flores da história,
à minha Pátria querida
hinos tecia de glória.
No fogo da mocidade,
nessa estação da alegria,
10
cantava gratas mentiras,
amores qu'eu não sentia.
Às vezes também chorava;
e tu, oh lira pressaga,
já teu destino previas,
15
e o pranto que ora te alaga.
Qual na rosa que emurchece
seca o orvalho que a aljofrava,
assim secou-se em meus lábios
o riso que os enfeitava.
20
Minha voz enrouqueceu-se,
meu coração enlutou-se,
e o astro que me aclarava
em densa treva nublou-se.
Antes que o sopro do tempo
25
murchasse a flor de meu rosto,
a palidez já o tinge,
causada pelo desgosto.
A folha na primavera,
se pelo inseto é roída,
30
assim perde o verde esmalte,
assim murcha, e cai sem vida.
Deixei a prezada Pátria,
deixei a mãe carinhosa;
perdeu então minha lira
35
sua voz harmoniosa.
Ao som das vagas do Oceano
foi minha lira aprendendo
a suspirar quando choro,
a ir comigo gemendo.
40
Companheira de meu fado,
pelo mundo vagueando,
juntos os Alpes subimos,
estranhas terras pisando.
Nos Alpes, como num trono
45
que me alçava além do mundo,
a glória do Onipotente
entoei venerabundo.
Entre góticas pilastras,
arroubado no infinito,
50
cantei a vida futura,
consolo de um peito aflito.
Sentado sobre ruínas,
achei um eco na lira;
e sobre o nada da vida,
55
deu-me sons qu'eu nunca ouvira.
Entre campas, e cipestres,
sozinho num cemitério,
chorando a sorte de um vate,
na lira achei refrigério.
60
Solitário entre os viventes,
do mundo desconhecido,
como a planta errante d'água
apenas tenho vivido.
A glória, esperança vária,
65
sonho falaz do acordado,
febre que os Gênios inspira,
só me não tem inspirado.
Amiga melancolia,
consumidora saudade,
70
vós envolveis os meus dias
desta triste suavidade.
Em cada estação ostenta
diverso aspecto a Natura;
ora de cristais se adorna,
75
ora de fresca verdura.
As aves também renovam
seu canto co'a Natureza;
tudo muda, só minha alma
conserva sua tristeza.
80
Único bem qu'eu possuo,
oh minha estimada lira,
companheira de infortúnios.
comigo chora, e suspira.
1836
O canto do cisne
Como o aceso turíbulo balança
5
ante o altar, de incenso alimentado,
suavíssimos perfumes exalando,
assim minha alma oscila
das ilusões do mundo afadigada;
e suspirando então pelo infinito,
10
humilde a Deus seu pensamento exalça.
Cada pensamento meu,
como uma baga de incenso,
do turíbulo de minha alma
sobe ao alcáçar do Imenso.
15
Eis por que ainda no da vida exílio,
entre o véu de tristeza que me enluta
alguns assomos de prazer ressumbram,
como do pirilampo
na escuridão da selva a luz lampeja;
20
eis por que minha lira
inopinados sons desliza às vezes;
eis por que ainda para mim um riso
a Natureza enfeita;
eis por que a noite presta-me seu bálsamo,
25
e na aurora que surge encantos acho.
Eco para meus suspiros
eu acho na Natureza;
e para a voz de minha alma
um acento de tristeza.
30
Ah! porventura a lira abandonada,
que rota e muda jaz de pó coberta,
porventura ainda vive?
A lira morre, quando mais não soa,
morre, quando, estalando a última corda,
35
evapora o seu último soluço.
Assim sou eu sobre a terra;
é minha alma como a lira,
que morre, quando não geme;
que vive, quando suspira.
40
Como vive o proscrito em riba estranha?
No pensamento apenas,
nos quadros de sua alma, tristes quadros,
como a noite sem lua, e sem estrelas;
quadros nublosos, pela mão traçados
45
da pálida Saudade.
Oh mundo, oh mundo, exílio de minha alma!
Vida, cruel tirano que me prendes!
O que é a vida? Um contínuo
passar das trevas à aurora;
50
cadeia que nos arrasta,
turbilhão que nos devora.
Eis a vida!... E depois?... Mistério horrível!
Infinito, onde o espírito se perde,
como um átomo no espaço;
55
deserto, onde vagueia a fantasia,
repouso, e asilo incerta procurando,
como nos areais da ardente Arábia
o peregrino afadigado busca,
para a sede aplacar, mesquinha fonte,
60
e um ramo que lhe abrigue os lassos membros.
Talvez que amanhã se ultime
a sentença do proscrito,
e que livre das cadeias,
vagueie nesse infinito.
65
E quem sabe se a voz da Eternidade
agora me revela,
que este manto, que enoita a Natureza,
como do esquife o mortuário pano,
para sempre a meus olhos cobre a terra?
70
Quem sabe se ao raiar da aurora crástina,
a seu hino de vida
um eco faltará de minha lira,
de minha alma um gemido?
Cada minuto da vida
75
pode ser o derradeiro;
da vida ao nada há um ponto,
e o homem passa-o ligeiro.
O Cisne que desliza à flor do lago,
perlas formando co'o bater das asas,
80
mudo a garganta alonga,
e só da morte a voz nela ressoa;
como uma flauta que do tronco pende
por amoroso voto,
pelo vento agitada,
85
embalança, e suaves harmonias
exala de seu tubo:
Assim a voz do cisne se desata,
pela morte inspirado;
assim se melodia,
90
para doce entoar o hino extremo.
Mas acaso sabe o Cisne,
terno canto desferindo,
que em cada acento que solta,
a vida lhe vai fugindo?
95
Companheiro do Cisne, o tenro arbusto
que uma só vez floresce,
e quando assim se adorna, murcha, e morre,
como no dia nupcial a esposa,
sabe ele porventura que essas flores
100
são as galas da morte?
A lâmpada que expira, e um clarão solta,
acaso sabe se lhe míngua o óleo?
O rio que no prado se resvala,
acaso dizer pode:
105
Amanhã terá fim minha corrente?
E o zéfiro que brinca saltitando
sobre as frescas corolas, sabe acaso,
se ainda existirá no sol seguinte?
Nós acaso conhecemos
110
melhor que eles nossa sorte?
Podemos dizer: este hino
é nosso hino de morte?
Eu canto como o Cisne, sem que saiba
se é meu último canto;
115
como o arbusto que brota mortais flores,
minha alma se dilata, e aromas verte;
como a luz que falece, e se afogueia,
em sacro amor meu coração se inflama;
como o rio que manso se desliza,
120
como o ligeiro zéfiro que adeja,
devolvem-se meus dias,
como vagas do mar, um após outro,
e não sei qual será o derradeiro.
Inda um suspiro, minha alma,
125
como o Cisne hoje exalemos.
Se amanhã virmos a aurora,
novos hinos entoemos.
Cantemos, cantemos
co'a noite, e co'o dia,
130
seja nossa vida
contínua harmonia.
FIM DOS SUSPIROS POÉTICOS