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A velhice

Longa foi a viagem;

assaz lutastes; descansai agora.

Depois de haver vingado alpestre monte

desde o albor da manhã, o peregrino

afadigado desce,
5

e envolto em trevas vai pousar no vale.

Para vós assaz auroras madrugaram;

por vós luas assaz alvas luziram;

assaz de flores esmaltou-se a terra,

e de frutos as árvores copadas.
10

Sim, sim, assaz gozastes;

mas uma voz vos chama, e vos diz: -basta.

Basta! -A hora soou; abre-se a campa,

e o sopro do seu antro,

como o vapor da cânica caverna
15

nas margens do sombrio Aniano lago1,

da vida vos apaga a tênue flama.

Para vós basta, oh Velhice!

Inda o sol tem resplendores,

inda a noite tem estrelas,
20

inda a lua alvos fulgores.

Inda os prados reverdecem

e de florzinhas se arreiam;

inda, suspensos nos ramos,

os passarinhos gorjeiam.
25

Inda o zéfiro sereno

cheio de aroma, e doçura,

fruindo o néctar das flores,

na madrugada murmura.

Inda a cascata ruidosa
30

entre seixos se despenha;

nda o som da sua queda

ressoa ao longe na brenha.

Inda os regatos deslizam,

as feras nos bosques rugem,
35

e lambendo a branca areia,

nas praias as ondas mugem.

Tudo vida inda respira;

a terra não stá mudada;

vós só marchais, oh Velhice,
40

triste, débil e curvada.

Vossos olhos se fecharam

ao quadro da Natureza;

em torno de vós só giram

a morte, o horror, e a tristeza.
45

Tudo em seu morno silêncio

agora vos anuncia

que a noite só vos pertence,

que para vós vai-se o dia.

A noite eterna vos estende os braços,
50

ah! preparai-vos para o sono eterno.

Basta! -E' hora das preces.

Funéreo som no templo os bronzes vibram,

e o eco seu parece dizer -morte!

Sob o peso da fronte encanecida,
55

já se curva e vacila o vosso porte,

qual co'os flocos de neve a frágil hástea;

entoastes o cântico da vida,

entoai vosso cântico de morte;

como o cândido cisne,
60

que indo descer à escuridão do lago,

cantando diz-lhe adeus na fatal hora,

para nunca mais ver raiar a aurora.

Basta! -E' hora das preces, oh Velhice!

Para o mundo acabastes.
65

Vossa alma resgatai do barro impuro;

o céu, que alma vos deu, pede vossa alma,

e a terra vosso corpo está pedindo;

ah! dai à terra o que vos deu a terra!

Mas ah, não choreis!
70

E por que chorais?

Se vós não sabeis

nem o que ganhais,

nem o que perdeis.

Perdeis a terra, é certo; mas que importa,
75

se celeste esperança vos conforta!

Viver é sonhar,

sonhar é dormir;

deveis acordar,

para ao céu subir,
80

e no céu velar.

Acordai; sossegai o aflito peito,

que ides deixar o amargurado leito.

O pranto enxugai,

bani o temor;
85

o Nome entoai

do Eterno Senhor;

e a Ele voai.

Vossa bênção lançai à Mocidade,

que vai na luta entrar da Humanidade.
90


Paris, janeiro de 1836

A beleza

Oh Beleza! Oh potência invencível,

que na terra despótica imperas;

   se vibras teus olhos

   quais duas esferas,

quem resiste a seu fogo terrível?
5

Oh Beleza! Oh celeste harmonia,

doce aroma, que as almas fascina;

   se exalas suave

   tua voz divina,

tudo, tudo a teus pés se extasia.
10

A velhice, do mundo cansada,

a teu mando resiste somente;

   porém que te importa

   a voz impotente,

que se perde, sem ser escutada?
15

Diga embora que o teu juramento

não merece a menor confiança;

   que a tua firmeza

   stá só na mudança;

que os teus votos são folhas ao vento.
20

Tudo sei; mas se tu te mostrares

ante mim como um astro radiante,

   de tudo esquecido,

   nesse mesmo instante,

farei tudo o que tu me ordenares.
25

Se até hoje remisso, não arde

em teu fogo amoroso meu peito,

   de estóica dureza

   não é isto efeito;

teu vassalo serei cedo ou tarde.
30

Infeliz tenho sido até gora,

que a meus olhos te mostras severa;

   nem gozo a ventura,

   que goza uma fera;

entretanto ninguém mais te adora.
35

Eu te adoro como o Anjo celeste,

que da vida os tormentos acalma;

   oh vida da vida,

   oh alma desta alma,

um teu riso sequer me não deste!
40

Minha lira que triste ressoa,

minha lira por ti desprezada,

   assim mesmo triste,

   assim malfadada,

teu poder, teus encantos pregoa.
45

Oh beleza, meus dias bafeja,

em teu fogo minha alma devora;

   verás de que modo

   meu peito te adora,

e que incenso ofertar-te deseja.
50


Paris, março de 1836

O mistério

O sol empalidece, o céu se enluta,

o raio despedaça o véu do Templo,

   soltos trovões rebramam;

de espanto, e horror a Natureza geme,

chora Jerusalém, tremem seus muros,
5

   e estupefato o povo

entre o riso e o terror sem tino vaga.

Que sublime mistério o Eterno Padre

   revolve em sua mente?

Que grande sacrifício o céu consuma?
10

Quem é Esse que expira no Calvário

   entre dous criminosos,

nos braços de uma Cruz, com rosto brando,

como se o fel da morte não provasse?

O monte que suporta o peso ingente
15

suspira a cada gota desse sangue,

que o rega, e cai-lhe dos feridos membros

   da vítima sublime.

Quem é Esse, de quem o céu, e os astros

   a morte estão carpindo?
20

Não, não é um mortal! -Razão altiva,

em vão procuras ocultar seu Nome!

E' o Filho de Deus, que sobre a terra

espalhou a Moral pura e celeste,

   aos homens ensinando
25

a verdade, o amor, e o sofrimento.

Só o Filho de Deus na Cruz podia

sofrer por nosso amor este tormento.

Homens degenerados

sem pejo aos pés de deuses se prostravam
30

   tão infames como eles.

Corria humano sangue sobre as aras

em sacrifício à vil hipocrisia

   de oráculo fingido;

e as ímpias mãos de um impostor sagrado,
35

nas palpitantes vísceras pousando,

iam depois queimar o incenso impuro

ante o altar do crime endeusado.

Tudo do engano as trevas encobriam;

   só déspotas raivosos
40

   a seu grado reinavam;

e nas públicas praças, e nos circos

só escravos em ócio pão pediam.

Como de vaga em vaga repelidos

   os restos do naufrágio,
45

vão na areia encalhar, tal parecia

que a Humanidade ao fim tocado havia.

No meio deste horror eis que aparece,

como um íris de paz, do Eterno o Filho.

   O erro confundido,
50

procura em vão lutar. Embalde se erguem

fogueiras aos Cristãos. Espavorido

vê o sedento algoz imbeles virgens

com os olhos no céu vencer a morte;

e das trêmulas mãos por terra caem
55

   a sangüíneas as bipenes;

os falsos deuses dos altares saem;

e sobre o Capitólio a Cruz se eleva,

como o sinal da redenção do mundo.

   Vitória, os céus entoam,
60

   Vitória à Humanidade!

O Cristo do Senhor desceu à terra,

e aos homens ensinou a sã verdade.


Roma, 17 de abril 1835

Um passeio ás Tuilerias

Eis-me no mundo!... Aqui presente o tenho

todo, tal como ele é, em breve quadro!

Aqui os homens o prazer procuram,

e mil vezes aqui a dor encontram.

   Nestas ruas de flores,
5

confundidos os sexos, as idades,

e o vício confundido co'a virtude,

   se encontram, se abalroam.

Debaixo destas árvores em renques,

qu'inda de gala há pouco de gala se cobriam,
10

e já empalidecem só co'o sopro

longe do inverno, como reis de um dia,

   o fido amante espera

   a retardia amada.

Meditabundo aqui passeia o sábio,
15

   e inspirações recebe;

aqui o velho ao sol as cãs aquece;

e vê correr o infante após seu arco,

   inquieto e afanado,

como após a Fortuna corre o adulto.
20

Aqui sobre esta pedra solitário

o cândido Filinto repousava,

chorando a Pátria, que lhe fora ingrata,

e, malgrado a injustiça, amando-a sempre.

Co'os Mártires nas mãos, n'alma a poesia,
25

   aqui ao Luso idioma

imortal monumento ergueu glorioso,

que ao lado dos Lusíadas sublimes,

parelhas correrá co'a eternidade.

Que imenso é o Universo! que infinito!
30

E tu, Senhor, tu só num volver de olhos

   tudo vês, tudo alcanças!

Como é este lugar tão limitado!

Entretanto o que o seu recinto abrange

   meus olhos não distinguem.
35

Esta coluna d'água impetuosa,

que compelida esguicha, e no ar se curva

   pelo vento açoutada,

de um lado e de outro lado vacilante,

como um branco penacho aos ares solto,
40

   e de poeira em forma

cai, e tranqüila jaz no largo tanque;

representa, oh mortal, a história tua!

   Assim humilde nasces,

da terra assim te elevas arrojado,
45

assim te agita das paixões a fúria,

assim pendes, e em pó no comum fosso

descansas, té que soe a voz terrível

do Arcanjo do Senhor, no eterno dia.

Desde que no horizonte o sol fulgura,
50

té que a Noite, e o silêncio se anunciam,

ondas de homens sobre ondas incessantes

   este recinto invadem.

De quatro lados sete portas francas;

e um só não vejo em vestes que o trabalho,
55

   e a indigência assinalem.

Tentais embalde entrar: -ide-vos, pobres,

ide-vos, homens ao trabalho afeitos.

Ergueram, vossas mãos estas muralhas,

vossas mãos estas portas fabricaram,
60

   que hoje ante vós se fecham;

com o vosso suor foi amassada

a terra, que estas árvores sustenta,

mas gozar não podeis da sombra delas

vós deveis sementar; outros que fruam.
65

Aqui vós não entrais: -ide-vos, pobres.

Como réproba assim por toda parte

com desprezo se expulsa a indigência,

   feio crime entre os homens!

Aquele ontem beijava o pó da terra,
70

hoje à custa de usura, e latrocínio,

envernizado com pomposo nome,

   grande, nobre se ostenta!

Tal a serpente em torcicolos chega

arrastando-se ao cume de alto monte,
75

que o brioso animal vingar nem tenta.

o mundo é sempre assim, é sempre o mesmo;

os esforços, os bens da sociedade

são sempre para quem menos carece.

Entre estes arvoredos lá diviso
80

   do Gigante da terra

a Coluna imortal, e a estátua egrégia,

qu'inda parece ameaçar o mundo.

Ali vejo domado, e curvo o orgulho

   dos déspotas dos povos.
85

   Ali a Liberdade

sentada está no carro da vitória,

de louros coroada, mas sombria.

Ali vejo de Deus a onipotência,

que ergue, quando lhe apraz, do pó um homem,
90

para calcar dos Reis o cetro, e o orgulho.

Ali vejo o valor, vejo a justiça;

Grécia, e Roma ali vejo num só Gênio!

Seu corpo tem por túmulo um rochedo,

onde continuamente o Oceano chora;
95

seu grande nome a terra toda o sabe.

O palácio aqui está, de um rei morada.

quantas recordações nele desperta!

Co'a mesma rapidez com que num sonho

   as sombras se sucedem,
100

tal os fastos da história se me antolham

cena por cena em quadros animados.

Aqui Paraguassu, filha dos bosques,

do esposo ao lado entrou extasiada,

vendo a grandeza da Européia corte.
105

Um rei lhe deu a mão; e uma rainha

da boca sua ouviu as maravilhas

do seu caro Brasil, então deserto.

Ah saiamos daqui; que horríveis quadros

me vêm ora turbar a fantasia.
110

   Marmóreos simulacros

dos divinos heróis da Grécia, e Roma,

descerrai vossos lábios; pois que o gênio

de bruta mole em homens converteu-vos,

falai, por Deus falai; eu vos conjuro;
115

dizei-me se melhores do que os de hoje

os mortais foram das passadas eras.

Mas vós não respondeis; ficai, sois pedra.

   Esta escada subamos;

como silencioso se desliza
120

o outrora ovante Sena! Nem murmura!

Como humilde atravessa estas arcadas!

Não sois assim, da minha Pátria oh rios!

Oh Paraná, oh túmido Amazonas!

   Eu já te vi, oh Sena,
125

altivo assoberbar estas muralhas;

hoje mesquinho nem banhá-las podes:

Hoje o ousado menino a ti se lança.

De um destronado rei és triste imagem;

sem pompa assim caminha desprezado
130

dos próprios seus, que o respeitaram, servos:

   tudo assim é na terra!

No meio estou da capital do Mundo!

ali vejo dos sábios a morada,

   aqui das leis o templo,
135

entre suas colunas vagueando

com talhe ameaçador se me afigura

do rival de Demóstenes o espectro.

Deste lado o obelisco majestoso,

que à terra estranha os homens transplantaram,
140

como um filho grosseiro dos desertos

entre um povo que os séculos poliram.

Sabes tu que lugar marcar vieste?

Sabes tu essa cor o que nos mostra?

Esta terra que ocupas foi outrora
145

lugar do cadafalso! foi banhada

co'o sangue de Luís, de um rei co'o sangue.

   Mas o sol se retira,

e já se enluta o céu, e a Natureza.

Por que todos ali vão reunir-se?
150

Melódicos acentos de harmonia

   meus ouvidos adoçam!

   Oh música divina!

És tu que atrais os homens, que dispersos

   sem ordem vagueavam.
155

Do céu foi inspirado o que primeiro

um som com outro som cadenciando,

pôde dar o transunto harmonioso

de Deus, da Sociedade, e do Universo.

Já não vedes, meus olhos; novas trevas
160

envolvem do Senhor as maravilhas.

De dia em dia assim, de noite em noite,

horas, anos, e séculos se abismam

no seio da perpétua Eternidade.

   O homem nasce, e morre;
165

   Tu só, meu Deus, és grande.


A tristeza

Triste sou como o salgueiro

solitário junto ao lago,

que depois da tempestade

mostra dos raios o estrago.

De dia e noite sozinho
5

causa horror ao caminhante,

que nem mesmo à sombra sua

quer pousar um só instante.

Fatal lei da natureza

secou minha alma e meu rosto;
10

profundo abismo é meu peito

de amargura e de desgosto.

À ventura tão sonhada,

com que outrora me iludia,

adeus disse, o derradeiro,
15

té seu nome me angustia.

Do mundo já nada espero,

nem sei por que inda vivo!

só a esperança da morte

me causa algum lenitivo.
20


A aflição

Não, não é sangue; é fel envenenado,

   que em minhas veias gira.

Não, não é vida; são espinhos hirtos,

são ervados acúleos, que incessantes

   o coração me pungem.
5

Não, não é ar; é o hálito da morte,

   que o peito me comprime.

Não são do mundo as cenas que me envolvem,

   são as cenas do Inferno.

É possível, meu Deus, que tanto sofra
10

um mísero mortal, e qu'inda viva?

   Queres ver do teu servo

a alma, de padecer já calejada,

sem murmurar, sem blasfemar té onde

   a paciência leve?
15

Em mim acaso novo Job preparas?

Ou o meu coração não é de humano,

ou a dor já o tem empedernido

   co'o reiterado embate.

Oh meu Senhor, pequeno é o meu peito,
20

para conter um coração repleto

de tantas aflições, de angústias tantas.

   tira-me a própria vida,

   tira-me o sentimento,

ou com tríplice lâmina de ferro
25

forra meu peito, e meus ouvidos cobre.

   Oh dever de homem probo!

Hei de eu como uma incude duros golpes

suportar insensível, sem queixar-me

de quem martírios tais sem dó me causa?
30

Sem dó?... E talvez mais; sem um remorso!

   Tu Zeno, assim me ensinas;

   filosofia austera,

eu sigo a tua lei, por ti me guio.

   Oh que esforço é preciso
35

na idade do prazer, e do interesse!

Eu chorei, e meus olhos se secaram;

nem mais em nova dor lágrimas novas

terei para chorar; as dores todas

fizeram-me tragar seus amargores;
40

não há mais dor que apresentar-me possa

nova taça de acético veneno.

   O triste solitário,

que em áspero deserto transviado,

de improviso se vê acometido
45

de cruéis serpes, que o pescoço lhe atam,

   e cravam-lhe no peito

agudas presas de peçonha cheias,

   é a horrível imagem

do estado meu, do meu duro martírio.
50

   Mas quem poderá crer-me?

Quem pode avaliar minhas angústias?

Mimosos do prazer, eia, deixai-me;

de vossa compaixão não necessito,

   vosso riso me ofende.
55

Estala, oh coração, estala, acaba!

   Não tens uma só fibra,

que ao golpe de uma dor não retinisse.

Por que não deixas o meu corpo, oh alma?

Que fogo de esperança inda te anima?
60

Oh esperança, quase que me foges!

Não há consolação para o infelice,

que longe de seus pais, da Pátria longe,

   definha entre pesares.

Que, oh mundo, com dores só misturas
65

as lições que nos dás? A experiência

   só com dores se colhe,

como uma flor de espinhos guarnecida?

São inúteis os livros, e os conselhos?

   É tudo a experiência?
70

A experiência é só quem nos ensina

   a ciência da vida?

   Oh infantil vaidade!

Vós, oh jovens, cuidais que sabeis tudo,

as páginas de um livro apenas lendo.
75

Dos velhos desprezais os sãos conselhos,

e orgulhosos dizeis: -Hoje a velhice

lições deve tomar da juventude;

hoje de nossos pais acima estamos.

Moço sou, como vós sábio julguei-me;
80

   como vós iludi-me.

Ontem fagueira a sorte se mostrava,

   ria-se a Natureza,

e em sacros laços de amizade estreita

os homens se apertavam.
85

Hoje terrível tempestade brama,

   os homens se repelem, se debatem,

como rábidas feras nas florestas.

   Misterioso enigma,

inexplicável Ser, capaz de tudo,
90

fonte de vícios, de virtudes fonte,

que edificas, que assolas, e que sempre

de ruína em ruína ovante marchas,

   como um Gênio de morte,

   dize, o que és tu, oh homem!
95

Cala-se a Natureza, e só ressoa

   um grito doloroso

   dos túmulos erguido,

como um gemido de agoureiro Mocho,

quando sobre destroços esvoaça.
100

   No peito a destra aplico;

palpita o coração fraco e pausado,

atento escuto, as pulsações calculo;

   não me agita o remorso,

nem espectros a noite me apresenta;
105

e minha alma tranqüila na tormenta

   como um firme penedo,

nem a sombra de um crime a entenebrece.

Doce consolação de um peito aflito!

Oh único juiz incorruptível,
110

oh meu Deus, ante quem brilha a verdade

mais clara do que o sol; a cujos olhos

o mais pequeno verme iguala ao homem,

e a Natura descobre os seus arcanos;

tu, que o meu coração penetrar podes,
115

julga tu só e vê se são meus erros

   iguais às minhas dores.

Enganar-te, oh meu Deus, não pode o homem!

se feia iniqüidade nele habita,

se mereço o que sofro, ah deixa, deixa
120

que os inimigos meus de mim se vinguem.

Não me atendas, Senhor; meus ais despreza.

   deixa expiar meus erros

na terra, onde este pó ao mal me prende,

antes que eu suba ao tribunal eterno.
125

Mas se fala a inocência em meu socorro,

mostra a verdade, salva-me, e absolve

   aqueles que me infamam;

que eu os perdôo, oh Deus; por ti o juro;

sou Cristão; -e o Cristão sofre, e perdoa.
130


A consolação

Que tens? De que te queixas, desgraçado?

É da Pátria a saudade que te aflige?

São os erros dos homens? São teus erros,

que pesam sobre ti? És criminoso?

Aborreces a vida? A morte queres?
5

O qu'hei de eu responder? Não, oh meus lábios,

não reveleis arcanos de minha alma,

   não crimineis os homens;

queixas inúteis são; lábios, calai-vos.

A quem não sente o mal, que importa o alheio?
10

Não; não sou desgraçado. Estas profundas

dores que me aguilhoam d'alma os seios.

são os sinais de uma lição do mundo.

Sinto a dor, mas sou grato à Providência,

que destarte me instrui, como mãe terna,
15

que só para ensinar o filho pune.

No mais íntimo d'alma o virtuoso

acha quem o console na desgraça.

desgraçado, és tu só, tu miserável,

tu, que não do assassino o punhal temes,
20

mas o punhal da própria consciência.

Lei é da Humanidade, e não do acaso;

sofrer, sempre sofrer é seu destino.

A Natureza o homem bruto cria,

   o mundo o aperfeiçoa
25

   com dores e trabalhos.

Como se brunem com o atrito os seixos

   no revolver das ondas,

ou como no crisol, à chama exposta,

   se purifica a prata,
30

destarte, entregue à dor, doma-se o homem.

O templo da verdade o erro escolta,

armado de punhais, e de flagícios;

e antes que a Humanidade entrever possa

um claro lume do seu divo rosto,
35

   ah quantos são primeiro

   tristes vítimas do erro,

servindo de degraus da luz ao ingresso!

Nossos olhos lancemos ao passado,

e co'o fanal da história descubramos
40

quantos martírios nossos pais sofreram.

Tudo o que vemos nada é mais que a luta

   da verdade, e do erro.

A verdade, que herdada hoje gozamos,

assaz regada foi com sangue humano;
45

por nós dezoito séculos lutaram,

e nós pelo porvir lutamos hoje.

   Não é fora do mundo,

engolfado em prazeres que embriagam,

em brando leito lânguido estendido,
50

rodeado de escravas, que o incensam,

como um rei do Oriente; nem na mesa

de esplêndido banquete, qual Lúculo,

que se colhem lições da experiência.

Não; engana-se aquele, que Epicuro
55

mal interpreta, e diz: Eia, gozemos;

a vida no prazer cifra-se toda.

É nos cárceres só, é nos perigos,

quando ao exílio marcha o justo Aristides,

quando Homero chorado pão esmola,
60

quando no cárcer galileu medita,

quando do trono avito um rei baqueia;

a experiência então a voz levanta:

Sólon, Sólon, Sólon, bem mo dizias!

Do passado a lembrança é morta idéia;
65

a experiência só, a experiência,

   dura, severa mestra,

por caminhos de dores, entre espinhos,

   guia o incerto passo

do mortal que viaja sobre a terra.
70

a dor é da verdade companheira;

quem busca a experiência, a dor encontra.

Por que pois lamentar se a dor é útil?

se ela é núncia de um mal, de que nos cumpre

fugir, ou evitar assaltos novos?
75

O fogo que ao infante o dedo queima,

a refletir o ensina, enquanto os mimos

da terna mãe mil vezes o corrompem.

   Oh desgraçado aquele

que jamais suportou uma só mágoa,
80

e que de gozo em gozo vê seus dias

   correr tranqüilamente;

   como a flor nasce, e morre,

mas como a flor também nada conhece;

   existe, mas não vive,
85

que é, sem dor, o prazer uma quimera.

Para vermos a luz, que ânsias, que dores

não sofrem nossas mães? Mas nesse instante

as dores maternais, nascendo, herdamos.

Glória, fama, saber dores nos custam;
90

até o último expiro a dor nos segue;

e quem sabe se à dor põe termo a morte?

Como é feliz aquele que levanta

seu espírito a Deus, e com fé pura,

   no meio da tormenta,
95

que o mundo sem cessar contra nós arma,

   do céu auxílio espera,

enquanto sem conforto, entregue à raiva,

blasfema o ímpio contra Deus, e os homens.

Feliz quem assoberba a iníqua sorte;
100

e, para o consolar, acha a virtude,

   que benéfica brilha,

como em negra soidão plácido lume

alma esperança gera, prometendo

asilo ao peregrino afadigado.
105

Feliz, feliz mil vezes, quem tranqüilo

não ouve o apuridar da consciência,

   e um só crime exprobrar-lhe!

E no leito da paz, ou na masmorra,

não vê punhais em sonhos, nem fantasmas.
110

Mesmo quando os ruins dores lhe causem,

como Guatemosino atado, e posto

sobre estendidas, chamejantes brasas,

com os olhos no céu, sereno exclama:

   Num leito estou de rosas!
115

Entre afiadas rodas, açoutado

   com lâminas de ferro;

na cadeia, no circo, e na fogueira,

   ou alvo da calúnia,

o justo não stá só,
120

Deus é com ele.

Cadeias, circo, infâmia, fogo, e morte,

   tudo supera o justo.

Como as nuvens pejadas de vapores

   exalados da terra
125

do coruscante sol a face cobrem,

e por um pouco a Natureza enlutam;

mas depois da tremenda tempestade,

de mais belo cetim o céu se arreia,

e o sol raios dardeja mais brilhantes,
130

assim depois da angústia, e da calúnia

a inocência triunfa acrisolada.

   Ah! não nos lamentemos;

que quanto mais se sofre mais se alcança.

A dor só para o iníquo é um tormento.
135

   de Zeno as leis seguindo,

como se a não sentíssemos, vivamos;

Deus existe, e nos vê; Deus só nos julga.


Paris, 5 de setembro de 1834

A vida da inocência

A vida é plácida e bela

para quem a não conhece,

e na cândida inocência

qual puro jasmim floresce.

É uma aurora rosada,
5

um sonho delicioso,

para quem o arcano ignora

deste mundo caviloso.

É um mel suave e grato

para quem no lar paterno,
10

co'a bênção dos seus maiores,

recebe a bênção do Eterno.

É um celeste tesouro

para a tenra criatura,

que vive como tu vives,
15

vida dos Anjos tão pura.

Só vive assim a inocência

de Deus amada e querida!

Oh inocência! perfume!

Oh doce orvalho da vida!
20

Filha de pais virtuosos,

luminosa é tua estrela!

Vive para ornar o mundo,

feliz, inocente e bela.


A sepultura de Filinto Elísio

No Cemitério do Père La Chaise

   Eis-me fora do mundo,

   nas solidões dos mortos,

no império do silêncio, e da tristeza,

de campas, e ciprestes rodeado!

Cenas aqui não há, que aprazer possam
5

aos sentidos daqueles, que embebidos

nas ilusões do mundo, a morte temem,

como o completo termo da existência;

cegos, que a luz não viram do infinito!

À sombra destas árvores chorosas,
10

   encostado a um sepulcro,

ócio não pasta o rico em sesta amena;

nem quem o vero bem no engano cifra

   deste vale de angústias.

À dor esta mansão é consagrada,
15

e à saudade, e às lágrimas dos vivos,

que a Deus, e à Eternidade a mente sobem.

Aqui, sim, oh minha alma, aqui te exalta;

solta as prisões do barro que te oprime,

e vaga sem horror na imensidade.
20

Estas ruas de túmulos soberbos,

   que cidade figuram,

só corruptos cadáveres habitam,

poeira, nomes, e ossos descarnados.

Os mortos que nos mármores repousam,
25

não te encham de terror; nem os gemidos

de alguma triste esposa, ou mãe saudosa;

   nem do vento o murmúrio,

que merencório soa entre os ciprestes.

   nada temas, minha alma;
30

preconceitos da infância te não gelem;

   não; sem susto vagueia;

   mal não fazem os mortos;

só entre os vivos o temor é justo.

   Oh Filinto! Oh Filinto!
35

   Onde estás?... Escutemos...

Aqui nem mesmo os ecos me respondem.

Oh meu Filinto, é esta a vez terceira,

   que incansável te busco.

De um em um tenho lido os epitáfios
40

   destas fúnebres lousas;

   o teu só não encontro.

Onde é que a ingratidão da injusta Pátria,

   dessa Pátria que honraste

   co'os teus divinos carmes,
45

cavou-te a humilde sepultura? -Onde?

Dela ausente, proscrito, na miséria,

   como Camões viveste;

saudoso, e só por ela suspirando,

monumentos ergueste à glória sua;
50

e surda sempre foi aos teus gemidos;

como Camões morreste na indigência!

Mas ele ao menos expirou na Pátria!

Terra da Pátria recebeu seus ossos;

e tu? -Nem ela sabe onde repousas!
55

   Oh desgraçada Lísia!

Ingrata mãe de heróis, de egrégios vates,

assim desleixas teus preclaros filhos,

   que em fadigas se afanam

por cingir-te de brilho imarcescível?
60

Teu vate, teu cantor já te exprobrara,

quando com rouca voz assim dizia,

e não do longo canto afadigado,

mas de cantar à gente endurecida:

«O calor, com que mais se acende o engenho,
65

não o dá a Pátria, não; que está metida

no gosto da cobiça, e na rudeza

de uma austera, apagada e vil tristeza.»

No Universo estas vozes ressoaram;

línguas cem estas vozes repetiram;
70

   e o que fizeste, oh Lísia?

Chamaram-te madrasta, e mãe tirana;

   e hoje? -inda és a mesma!

Oh Pátria minha, o meu Brasil, não sejas

como Lísia cruel para teus filhos.
75

Ligado à sorte sua, tu suportaste

sec'los três os grilhões do cativeiro;

mas já que sacudiste a espessa treva,

   que os olhos te vendava,

da tua antiga Irmã vê as misérias,
80

   e de imitá-la teme.

Vejamos. -Estes mirtos tão viçosos

ornar devem de um vate a sepultura.

Oh será ele? -Não; aqui descansa

   o coração de um filho.
85

Não afrouxemos, vamos; que assim marcha

   a Humanidade inteira,

sem nunca repousar, sobre relíquias

   das gerações extintas.

Cada casa é um túmulo; e de sangue,
90

   lugar não há na terra,

   que manchado não fosse.

Um dia chegará a Humanidade

ao limite que Deus lhe prescrevera.

   Não descansemos; vamos,
95

enquanto a sepultura não acharmos

de Filinto, que há tanto procuramos.

Luísa e Abeilard inda no mármore,

juntos, da morte o eterno sono dormem,

neste gótico túmulo; mil c'roas
100

suas estátuas cobrem, que os amantes

   a seus pés depositam.

Qu'eu não possa pagar igual tributo!

   Amor, tu me desdenhas;

nunca um ósculo teu rociou meus lábios;
105

nunca de virgem olhos condoídos

sobre mim almas chamas espargiram;

   ah nunca fui amado!

Nascido para a dor, jamais minha alma

em delícias de amor sonhou ao menos!
110

Que ilustres nomes estas lousas mostram!

estátuas, bustos, inscrições só vejo

de prestantes varões, de egrégios vates.

Ao lado deste túmulo pomposo,

onde d'Arte o primor ofusca o nome
115

daquele que mimoso foi da sorte,

como a meu coração fala sublime

esta Cruz negra à sombra de um cipreste!

O sol desmaia; e precursor da noite

cinéreo véu nos ares desenrola-se.
120

Já fraqueio, e suor transuda a fronte.

Deixarei estes sacros aposentos,

sem que te encontre, o cândido Filinto?

Serei tão malfadado, que esta c'roa

depositar não possa em tua campa,
125

e sobre ela chorar, gravar meu nome?

   Ah não desesperemos;

mais um esforço. -Enfim, é ela, é ela!

Nem sequer um cipreste, um mirto a cobre!

Já lisa a pedra pelo pé do tempo
130

mal indica que teve um epitáfio.

   Ingrata Pátria! Ingrata!

O tempo ao menos, carcomendo a lájea,

tua vergonha oculta ao estrangeiro.

Oh meu Deus! aqui jaz desconhecido
135

quem cantou dos teus Mártires a glória

em altíssono metro harmonioso!

Reverente ante a tua sepultura,

oh Filinto, tu vês um triste filho,

que choroso, da Pátria ausente vive.
140

Jovem, talvez ardido, ousei na lira

os dedos aplicar, seguir teus vôos:

Sons, que desfiro rústicos, consagro

em holocausto a Deus, e à Pátria minha.

da celeste Sião, onde tua alma
145

   fulgurante resplende,

um raio de estro à minha mente vibra.

   Recebe esta coroa,

   estas folhas recebe,

que viçosas colhi na sepultura
150

do imortal La Fontaine, a quem honraste.

Quiçá prima homenagem sejam elas

que ao manes teus humana mão tribute.

Possa o tempo guardar estes, que escrevo,

tristes versos, até que um Luso os leia.
155

Uma lágrima dai, oh Portugueses,

uma lágrima ao menos a Filinto,

   ao desgraçado velho.

   Assaz honrou à Pátria;

em prêmio exílio teve. -Adeus, Filinto.
160

«Que exemplos pra futuros escritores!»


Paris, 28 de setembro de 1834

Uma manhã no monte jura

Deixemos este lúgubre aposento,

estas estreitas, tortuosas ruas,

e subamos, Amigo, este fraguedo.

Íngreme, escabrosíssimo, impossível

   parece que o vinguemos;
5

mas se à forte vontade a ação se aduna,

o que há na terra que resista ao homem?

   Eia, Amigo, subamos.

Já as flores da noite alvinitentes,

   que o firmamento esmaltam,
10

a desmaiar começam, só co'a vista

   dos arrebóis d'aurora.

Da terra alvos vapores se levantam

condensados, e no ar se desnovelam,

montes bosquejam, mares, e cidades,
15

e nos campos se perdem do infinito,

como agora se perde o pensamento

na vastidão de idéias, em que vaga.

Subamos do rochedo até ao cume;

lá, respirando um ar puro e suave,
20

recebendo do sol os primos raios,

louvores ao Altíssimo entoemos.

Subamos. -Que vastíssima paisagem!

Que cadeias de montes araçados,

e como torreões, grimpas, espectros,
25

   às nuvens se levantam!

Que tapetes de vinhas se desdobram,

e as várzeas, e as encostas alcatifam!

Que escuros tetos de mesquinhas vilas

salpicadas aqui, e ali, quais combros
30

de terra, que formigas amontoam!

De tantas sensações extasiada,

minha alma se sublima, e se converte

   num hino harmonioso,

em louvor do Senhor da Natureza.
35

A lucífera estrela ali fulgura;

lá se ergue o Sol num Oceano de ouro,

   de rubins ondeado!

Tu, que iluminas mil milhões de povos,

que outros tantos baixar tens visto ao nada,
40

e outros tantos subir ao grau daqueles;

cem, e cem vezes eu te vi radiante

atravessar contente e vagaroso

   de minha Pátria os campos,

   os serros, e as cidades,
45

como se, lei não sendo o movimento,

eterno no Brasil brilhar quisesses.

Oh Sol, ind'ontem viste essa ditosa

pátria, por quem suspiro aqui saudoso;

pátria, por quem me afano; mas se embalde,
50

longe dela acabar prefiro ao opróbrio

   de vê-la, e ser-lhe inútil.

Não, oh Pátria, não estou de ti distante;

comigo estás, é teu meu pensamento.

um desejo violento, irresistível,
55

como a enchente, que de alto se desaba,

todo me ocupa, e o coração me abala;

desejo de te ver no orbe cantada

como a primeira das Nações da terra.

   Descansemos, Amigo,
60

descansemos um pouco, que é difícil

por não trilhadas, perigosas sendas,

sem fadiga vencer tal penedia.

Olha, vês tu aquele que pasmado

debaixo nos contempla, e se confunde,
65

   envolto na poeira,

co'as pequenas ovelhas que apascenta?

Quiçá de nós dizendo esteja agora:

Eis dos homens té onde o arrojo chega!

Por que a plana estrada desprezaram,
70

onde sem risco todos nós marchamos,

para perigos afrontar ousados?

Cairão, cairão; serão punidos...

Assim mesquinhos entes invejosos,

   tristes aves de agouro,
75

que no charco comum patinham, grasnam,

quando vêm remontar altivos gênios

   às sublimes esferas,

esses, cuja missão é o progresso,

e das mãos arrancar da Natureza
80

   novas, úteis verdades,

clamam, praguejam, mas no charco morrem;

enquanto que de céu em céu voando,

de Nação em Nação, de povo em povo,

da Humanidade os astros benfeitores,
85

em torno a Deus, na Eternidade pairam

   de própria luz radiantes.

Trabalhemos, Amigo, pela Pátria,

   só por amor da Pátria,

e entreguemos a Deus nosso destino.
90

Se à região dos astros não subirmos,

pirilampos seremos nos desertos,

e aos nossos reunidos, luz daremos,

que nas trevas talvez ao desgarrado

   viajor encaminhe.
95

Trabalhemos, Amigo, pela Pátria,

só por amor da Pátria,

e entreguemos a Deus nosso destino.

Ah subamos ainda,

e cheguemos ao tope da montanha.
100

Esta pedra que cai, bate, e reflete,

e assim de curva em curva saltitante,

vai rolando, e batendo, até que chega

desfeita em mil pedaços,

é a imagem dos seres subalternos,
105

que só grandes parecem pela altura,

em que a cega ignorância os colocara;

mas quando se despenham, desaparecem,

sem que se abale o mundo; nem arrastam

   satélites consigo,
110

   a não ser a poeira

   que só os rodeava.

Assim muitos colossos se abismaram,

   colossos de vaidade:

Assim se enterrarão no eterno olvido
115

muitos que a Pátria nossa inda hoje oprimem

   co'o peso da ignorância.

Nossa Pátria tão bela! -Nossa Pátria

tão digna de um porvir grande e sublime!

Ei-la, como um cadáver de gigante,
120

roída por milhões de vis insetos,

   que ela mesma alimenta!

Olha, Amigo, esta pálida saudade,

que nesta penedia a custo vive.

Aqui não é que vegetar devia
125

   flor tão cara à minha alma.

Vês tu como ela pende a roxa fronte

mal que a colho, e a coloco no meu peito?

Como ela o coração, sofrendo a mágoa

   que o nome dela explica,
130

longe da Pátria, em que meus pais habitam,

   de languidez se encolhe.

Irás comigo, oh flor, terna saudade,

inda que murcha e seca; -irás comigo,

   e acabaremos juntos.
135


Poligny, 7 de outubro de 1834

A vista de Roma

É Roma! É Roma! É a cidade eterna!

Lá sobre a catedral do cristão mundo

de Buonarotti o gênio se levanta,

prodígio d'arte, maravilha humana

   consagrada a Deus vivo.
5

Entre suas ruínas, majestosa

   inda Roma se ostenta.

Inda seu nome impõe respeito ao mundo,

   e entusiasmo gera.

Mas Roma entre ruínas se me antolha
10

como essa arrependida penitente,

que a vã pompa do mundo desprezando,

a cruz do Redentor humilde abraça.

em vez de capacete, esparsa a coma;

em vez de cetro, cruz; o márcio riso
15

   não mais lhe habita os lábios,

nem lampejantes olhos mais incutem

   terror, vingança, e morte.

religiosa dor hoje a sublima,

e a veste de candura, e de beleza.
20

Rainha das Nações, eu te saúdo!

Mãe ilustre de heróis do mundo espanto!

Eu te vejo, e minha alma inda duvida!

E não sentida comoção me abala.

Esta vermelha terra, árida e seca,
25

qu'inda exala mortíferos vapores;

este inculto deserto abandonado

   dos homens, e das feras,

onde uma flor sequer não ri-se ao menos;

esta desolação, esta tristeza,
30

este horror sepulcral, que em torno gira

   da senhora do mundo,

tudo alfim aqui fala, e os olhos mostra

as sangrentas tragédias, que juncaram

   estes campos outrora.
35

De tanto sangue humano que a ensopara,

de tanto ferro gasto que a cobrira,

conserva ainda a cor a terra estéril!

Por que nuvens de corvos esvoaçam

nestes ares pejados de vapores?
40

Por que arrancam gemidos dolorosos,

que as carnes, e os cabelos arrepiam,

como se eles um mal também carpissem?

   Odor carnificino

ainda exalarão de Roma os campos?
45

É que não acham mais sangue que bebam!

   Cadáveres que os cevem!

Que Romano saído do sepulcro

reconhecer-te, oh Roma, poderia

que viajor, entrando em tuas portas,
50

não dirá: Onde estou? onde está Roma?

Se uma voz respondesse: Eis aqui Roma.

como não exclamar cheio de assombro:

Que maldição do céu caiu sobre ela!

Também têm as Nações suas idades.
55

   Jovem já foste, oh Roma!

Já guerreiro vigor armou-te o braço;

já tremeram de ti milhões de povos.

Fatigada de glória, e já curvada

   entre tuas ruínas,
60

hoje tu tremes, como uma Rainha

   anosa sobre o trono,

que em anos juvenis calcara ufana.

Hoje só em teu Deus arrimo encontras;

só a Religião te ampara a fronte,
65

que co'o peso dos séculos já pende.

Sem este novo Deus morta já foras.

Teus velhos deuses a paixões sujeitos,

teus senhores, teus Neros, e teus filhos,

   degenerada raça
70

dos Brutos, e Catões, raça maldita,

nos mais nefandos crimes só nutrida,

tudo alfim te arrastava ao horror, e à morte,

e te ia despenhar na sepultura.

Mas um Deus novo te salvou do abismo;
75

novas virtudes deu-te, graças novas,

e tu por ele só inda hoje vives.

Da guerra o Gênio que nas pugnas vela,

e o pacífico Gênio que aos destinos

dos Impérios preside,
80

entorpecidos de fadigas tantas,

   entre a poeira das ruínas tuas,

cobertos de lauréis, prostrados jazem.

Co'a espada o antigo mundo amedrontavas,

co'a Ciência, e a Razão guiaste o novo;
85

sim; a glória perdeste dos combates,

mas alcançaste da Ciência a glória.

Ignora o mundo teu porvir augusto,

que ao mundo oculta Deus seu pensamento;

mas tu despertarás à voz de um Gênio,
90

   do sono em que te abismas.

Dorme, dorme, que o Tempo não perece;

dorme, que um dia te erguerás mais bela;

dorme, até que a trombeta do teu Anjo

no mausoléu ressoe de Adriano.
95

Os desígnios de Deus serão cumpridos;

não, tu não morrerás, cidade eterna.


Roma, dezembro de 1834