A velhice
Depois de haver vingado alpestre monte
desde o albor da manhã, o peregrino
afadigado desce,
5
e envolto em trevas vai pousar no vale.
Para vós assaz auroras madrugaram;
por vós luas assaz alvas luziram;
assaz de flores esmaltou-se a terra,
e de frutos as árvores copadas.
10
Sim, sim, assaz gozastes;
mas uma voz vos chama, e vos diz: -basta.
Basta! -A hora soou; abre-se a campa,
e o sopro do seu antro,
como o vapor da cânica caverna
15
nas margens do sombrio Aniano lago1,
da vida vos apaga a tênue flama.
Para vós basta, oh Velhice!
Inda o sol tem resplendores,
inda a noite tem estrelas,
20
inda a lua alvos fulgores.
Inda os prados reverdecem
e de florzinhas se arreiam;
inda, suspensos nos ramos,
os passarinhos gorjeiam.
25
Inda o zéfiro sereno
cheio de aroma, e doçura,
fruindo o néctar das flores,
na madrugada murmura.
Inda a cascata ruidosa
30
entre seixos se despenha;
nda o som da sua queda
ressoa ao longe na brenha.
Inda os regatos deslizam,
as feras nos bosques rugem,
35
e lambendo a branca areia,
nas praias as ondas mugem.
Tudo vida inda respira;
a terra não stá mudada;
vós só marchais, oh Velhice,
40
triste, débil e curvada.
Vossos olhos se fecharam
ao quadro da Natureza;
em torno de vós só giram
a morte, o horror, e a tristeza.
45
Tudo em seu morno silêncio
agora vos anuncia
que a noite só vos pertence,
que para vós vai-se o dia.
A noite eterna vos estende os braços,
50
ah! preparai-vos para o sono eterno.
Basta! -E' hora das preces.
Funéreo som no templo os bronzes vibram,
e o eco seu parece dizer -morte!
Sob o peso da fronte encanecida,
55
já se curva e vacila o vosso porte,
qual co'os flocos de neve a frágil hástea;
entoastes o cântico da vida,
entoai vosso cântico de morte;
como o cândido cisne,
60
que indo descer à escuridão do lago,
cantando diz-lhe adeus na fatal hora,
para nunca mais ver raiar a aurora.
Basta! -E' hora das preces, oh Velhice!
Para o mundo acabastes.
65
Vossa alma resgatai do barro impuro;
o céu, que alma vos deu, pede vossa alma,
e a terra vosso corpo está pedindo;
ah! dai à terra o que vos deu a terra!
Mas ah, não choreis!
70
E por que chorais?
Se vós não sabeis
nem o que ganhais,
nem o que perdeis.
Perdeis a terra, é certo; mas que importa,
75
se celeste esperança vos conforta!
Viver é sonhar,
sonhar é dormir;
deveis acordar,
para ao céu subir,
80
e no céu velar.
Acordai; sossegai o aflito peito,
que ides deixar o amargurado leito.
O pranto enxugai,
bani o temor;
85
o Nome entoai
do Eterno Senhor;
e a Ele voai.
Vossa bênção lançai à
Mocidade,
que vai na luta entrar da Humanidade.
90
Paris, janeiro de 1836
A beleza
Oh Beleza! Oh celeste harmonia,
doce aroma, que as almas fascina;
se exalas suave
tua voz divina,
tudo, tudo a teus pés se extasia.
10
A velhice, do mundo cansada,
a teu mando resiste somente;
porém que te importa
a voz impotente,
que se perde, sem ser escutada?
15
Diga embora que o teu juramento
não merece a menor confiança;
que a tua firmeza
stá só na mudança;
que os teus votos são folhas ao vento.
20
Tudo sei; mas se tu te mostrares
ante mim como um astro radiante,
de tudo esquecido,
nesse mesmo instante,
farei tudo o que tu me ordenares.
25
Se até hoje remisso, não arde
em teu fogo amoroso meu peito,
de estóica dureza
não é isto efeito;
teu vassalo serei cedo ou tarde.
30
Infeliz tenho sido até gora,
que a meus olhos te mostras severa;
nem gozo a ventura,
que goza uma fera;
entretanto ninguém mais te adora.
35
Eu te adoro como o Anjo celeste,
que da vida os tormentos acalma;
oh vida da vida,
oh alma desta alma,
um teu riso sequer me não deste!
40
Minha lira que triste ressoa,
minha lira por ti desprezada,
assim mesmo triste,
assim malfadada,
teu poder, teus encantos pregoa.
45
Oh beleza, meus dias bafeja,
em teu fogo minha alma devora;
verás de que modo
meu peito te adora,
e que incenso ofertar-te deseja.
50
Paris, março de 1836
O mistério
Que sublime mistério o Eterno Padre
revolve em sua mente?
Que grande sacrifício o céu consuma?
10
Quem é Esse que expira no Calvário
entre dous criminosos,
nos braços de uma Cruz, com rosto brando,
como se o fel da morte não provasse?
O monte que suporta o peso ingente
15
suspira a cada gota desse sangue,
que o rega, e cai-lhe dos feridos membros
da vítima sublime.
Quem é Esse, de quem o céu, e os astros
a morte estão carpindo?
20
Não, não é um mortal! -Razão
altiva,
em vão procuras ocultar seu Nome!
E' o Filho de Deus, que sobre a terra
espalhou a Moral pura e celeste,
aos homens ensinando
25
a verdade, o amor, e o sofrimento.
Só o Filho de Deus na Cruz podia
sofrer por nosso amor este tormento.
Homens degenerados
sem pejo aos pés de deuses se prostravam
30
tão infames como eles.
Corria humano sangue sobre as aras
em sacrifício à vil hipocrisia
de oráculo fingido;
e as ímpias mãos de um impostor sagrado,
35
nas palpitantes vísceras pousando,
iam depois queimar o incenso impuro
ante o altar do crime endeusado.
Tudo do engano as trevas encobriam;
só déspotas raivosos
40
a seu grado reinavam;
e nas públicas praças, e nos circos
só escravos em ócio pão pediam.
Como de vaga em vaga repelidos
os restos do naufrágio,
45
vão na areia encalhar, tal parecia
que a Humanidade ao fim tocado havia.
No meio deste horror eis que aparece,
como um íris de paz, do Eterno o Filho.
O erro confundido,
50
procura em vão lutar. Embalde se erguem
fogueiras aos Cristãos. Espavorido
vê o sedento algoz imbeles virgens
com os olhos no céu vencer a morte;
e das trêmulas mãos por terra caem
55
a sangüíneas as bipenes;
os falsos deuses dos altares saem;
e sobre o Capitólio a Cruz se eleva,
como o sinal da redenção do mundo.
Vitória, os céus entoam,
60
Vitória à Humanidade!
O Cristo do Senhor desceu à terra,
e aos homens ensinou a sã verdade.
Roma, 17 de abril 1835
Um passeio ás Tuilerias
Nestas ruas de flores,
5
confundidos os sexos, as idades,
e o vício confundido co'a virtude,
se encontram, se abalroam.
Debaixo destas árvores em renques,
qu'inda de gala há pouco de gala se cobriam,
10
e já empalidecem só co'o sopro
longe do inverno, como reis de um dia,
o fido amante espera
a retardia amada.
Meditabundo aqui passeia o sábio,
15
e inspirações recebe;
aqui o velho ao sol as cãs aquece;
e vê correr o infante após seu arco,
inquieto e afanado,
como após a Fortuna corre o adulto.
20
Aqui sobre esta pedra solitário
o cândido Filinto repousava,
chorando a Pátria, que lhe fora ingrata,
e, malgrado a injustiça, amando-a sempre.
Co'os Mártires nas mãos, n'alma a poesia,
25
aqui ao Luso idioma
imortal monumento ergueu glorioso,
que ao lado dos Lusíadas sublimes,
parelhas correrá co'a eternidade.
Que imenso é o Universo! que infinito!
30
E tu, Senhor, tu só num volver de olhos
tudo vês, tudo alcanças!
Como é este lugar tão limitado!
Entretanto o que o seu recinto abrange
meus olhos não distinguem.
35
Esta coluna d'água impetuosa,
que compelida esguicha, e no ar se curva
pelo vento açoutada,
de um lado e de outro lado vacilante,
como um branco penacho aos ares solto,
40
e de poeira em forma
cai, e tranqüila jaz no largo tanque;
representa, oh mortal, a história tua!
Assim humilde nasces,
da terra assim te elevas arrojado,
45
assim te agita das paixões a fúria,
assim pendes, e em pó no comum fosso
descansas, té que soe a voz terrível
do Arcanjo do Senhor, no eterno dia.
Desde que no horizonte o sol fulgura,
50
té que a Noite, e o silêncio se anunciam,
ondas de homens sobre ondas incessantes
este recinto invadem.
De quatro lados sete portas francas;
e um só não vejo em vestes que o trabalho,
55
e a indigência assinalem.
Tentais embalde entrar: -ide-vos, pobres,
ide-vos, homens ao trabalho afeitos.
Ergueram, vossas mãos estas muralhas,
vossas mãos estas portas fabricaram,
60
que hoje ante vós se fecham;
com o vosso suor foi amassada
a terra, que estas árvores sustenta,
mas gozar não podeis da sombra delas
vós deveis sementar; outros que fruam.
65
Aqui vós não entrais: -ide-vos, pobres.
Como réproba assim por toda parte
com desprezo se expulsa a indigência,
feio crime entre os homens!
Aquele ontem beijava o pó da terra,
70
hoje à custa de usura, e latrocínio,
envernizado com pomposo nome,
grande, nobre se ostenta!
Tal a serpente em torcicolos chega
arrastando-se ao cume de alto monte,
75
que o brioso animal vingar nem tenta.
o mundo é sempre assim, é sempre o mesmo;
os esforços, os bens da sociedade
são sempre para quem menos carece.
Entre estes arvoredos lá diviso
80
do Gigante da terra
a Coluna imortal, e a estátua egrégia,
qu'inda parece ameaçar o mundo.
Ali vejo domado, e curvo o orgulho
dos déspotas dos povos.
85
Ali a Liberdade
sentada está no carro da vitória,
de louros coroada, mas sombria.
Ali vejo de Deus a onipotência,
que ergue, quando lhe apraz, do pó um homem,
90
para calcar dos Reis o cetro, e o orgulho.
Ali vejo o valor, vejo a justiça;
Grécia, e Roma ali vejo num só Gênio!
Seu corpo tem por túmulo um rochedo,
onde continuamente o Oceano chora;
95
seu grande nome a terra toda o sabe.
O palácio aqui está, de um rei morada.
quantas recordações nele desperta!
Co'a mesma rapidez com que num sonho
as sombras se sucedem,
100
tal os fastos da história se me antolham
cena por cena em quadros animados.
Aqui Paraguassu, filha dos bosques,
do esposo ao lado entrou extasiada,
vendo a grandeza da Européia corte.
105
Um rei lhe deu a mão; e uma rainha
da boca sua ouviu as maravilhas
do seu caro Brasil, então deserto.
Ah saiamos daqui; que horríveis quadros
me vêm ora turbar a fantasia.
110
Marmóreos simulacros
dos divinos heróis da Grécia, e Roma,
descerrai vossos lábios; pois que o gênio
de bruta mole em homens converteu-vos,
falai, por Deus falai; eu vos conjuro;
115
dizei-me se melhores do que os de hoje
os mortais foram das passadas eras.
Mas vós não respondeis; ficai, sois pedra.
Esta escada subamos;
como silencioso se desliza
120
o outrora ovante Sena! Nem murmura!
Como humilde atravessa estas arcadas!
Não sois assim, da minha Pátria oh rios!
Oh Paraná, oh túmido Amazonas!
Eu já te vi, oh Sena,
125
altivo assoberbar estas muralhas;
hoje mesquinho nem banhá-las podes:
Hoje o ousado menino a ti se lança.
De um destronado rei és triste imagem;
sem pompa assim caminha desprezado
130
dos próprios seus, que o respeitaram, servos:
tudo assim é na terra!
No meio estou da capital do Mundo!
ali vejo dos sábios a morada,
aqui das leis o templo,
135
entre suas colunas vagueando
com talhe ameaçador se me afigura
do rival de Demóstenes o espectro.
Deste lado o obelisco majestoso,
que à terra estranha os homens transplantaram,
140
como um filho grosseiro dos desertos
entre um povo que os séculos poliram.
Sabes tu que lugar marcar vieste?
Sabes tu essa cor o que nos mostra?
Esta terra que ocupas foi outrora
145
lugar do cadafalso! foi banhada
co'o sangue de Luís, de um rei co'o sangue.
Mas o sol se retira,
e já se enluta o céu, e a Natureza.
Por que todos ali vão reunir-se?
150
Melódicos acentos de harmonia
meus ouvidos adoçam!
Oh música divina!
És tu que atrais os homens, que dispersos
sem ordem vagueavam.
155
Do céu foi inspirado o que primeiro
um som com outro som cadenciando,
pôde dar o transunto harmonioso
de Deus, da Sociedade, e do Universo.
Já não vedes, meus olhos; novas trevas
160
envolvem do Senhor as maravilhas.
De dia em dia assim, de noite em noite,
horas, anos, e séculos se abismam
no seio da perpétua Eternidade.
O homem nasce, e morre;
165
Tu só, meu Deus, és grande.
A tristeza
De dia e noite sozinho
5
causa horror ao caminhante,
que nem mesmo à sombra sua
quer pousar um só instante.
Fatal lei da natureza
secou minha alma e meu rosto;
10
profundo abismo é meu peito
de amargura e de desgosto.
À ventura tão sonhada,
com que outrora me iludia,
adeus disse, o derradeiro,
15
té seu nome me angustia.
Do mundo já nada espero,
nem sei por que inda vivo!
só a esperança da morte
me causa algum lenitivo.
20
A aflição
que em minhas veias gira.
Não, não é vida; são espinhos
hirtos,
são ervados acúleos, que incessantes
o coração me pungem.
5
Não, não é ar; é o hálito da
morte,
que o peito me comprime.
Não são do mundo as cenas que me envolvem,
são as cenas do Inferno.
É possível, meu Deus, que tanto sofra
10
um mísero mortal, e qu'inda viva?
Queres ver do teu servo
a alma, de padecer já calejada,
sem murmurar, sem blasfemar té onde
a paciência leve?
15
Em mim acaso novo Job preparas?
Ou o meu coração não é de
humano,
ou a dor já o tem empedernido
co'o reiterado embate.
Oh meu Senhor, pequeno é o meu peito,
20
para conter um coração repleto
de tantas aflições, de angústias
tantas.
tira-me a própria vida,
tira-me o sentimento,
ou com tríplice lâmina de ferro
25
forra meu peito, e meus ouvidos cobre.
Oh dever de homem probo!
Hei de eu como uma incude duros golpes
suportar insensível, sem queixar-me
de quem martírios tais sem dó me causa?
30
Sem dó?... E talvez mais; sem um remorso!
Tu Zeno, assim me ensinas;
filosofia austera,
eu sigo a tua lei, por ti me guio.
Oh que esforço é preciso
35
na idade do prazer, e do interesse!
Eu chorei, e meus olhos se secaram;
nem mais em nova dor lágrimas novas
terei para chorar; as dores todas
fizeram-me tragar seus amargores;
40
não há mais dor que apresentar-me possa
nova taça de acético veneno.
O triste solitário,
que em áspero deserto transviado,
de improviso se vê acometido
45
de cruéis serpes, que o pescoço lhe atam,
e cravam-lhe no peito
agudas presas de peçonha cheias,
é a horrível imagem
do estado meu, do meu duro martírio.
50
Mas quem poderá crer-me?
Quem pode avaliar minhas angústias?
Mimosos do prazer, eia, deixai-me;
de vossa compaixão não necessito,
vosso riso me ofende.
55
Estala, oh coração, estala, acaba!
Não tens uma só fibra,
que ao golpe de uma dor não retinisse.
Por que não deixas o meu corpo, oh alma?
Que fogo de esperança inda te anima?
60
Oh esperança, quase que me foges!
Não há consolação para o
infelice,
que longe de seus pais, da Pátria longe,
definha entre pesares.
Que, oh mundo, com dores só misturas
65
as lições que nos dás? A
experiência
só com dores se colhe,
como uma flor de espinhos guarnecida?
São inúteis os livros, e os conselhos?
É tudo a experiência?
70
A experiência é só quem nos ensina
a ciência da vida?
Oh infantil vaidade!
Vós, oh jovens, cuidais que sabeis tudo,
as páginas de um livro apenas lendo.
75
Dos velhos desprezais os sãos conselhos,
e orgulhosos dizeis: -Hoje a velhice
lições deve tomar da juventude;
hoje de nossos pais acima estamos.
Moço sou, como vós sábio julguei-me;
80
como vós iludi-me.
Ontem fagueira a sorte se mostrava,
ria-se a Natureza,
e em sacros laços de amizade estreita
os homens se apertavam.
85
Hoje terrível tempestade brama,
os homens se repelem, se debatem,
como rábidas feras nas florestas.
Misterioso enigma,
inexplicável Ser, capaz de tudo,
90
fonte de vícios, de virtudes fonte,
que edificas, que assolas, e que sempre
de ruína em ruína ovante marchas,
como um Gênio de morte,
dize, o que és tu, oh homem!
95
Cala-se a Natureza, e só ressoa
um grito doloroso
dos túmulos erguido,
como um gemido de agoureiro Mocho,
quando sobre destroços esvoaça.
100
No peito a destra aplico;
palpita o coração fraco e pausado,
atento escuto, as pulsações calculo;
não me agita o remorso,
nem espectros a noite me apresenta;
105
e minha alma tranqüila na tormenta
como um firme penedo,
nem a sombra de um crime a entenebrece.
Doce consolação de um peito aflito!
Oh único juiz incorruptível,
110
oh meu Deus, ante quem brilha a verdade
mais clara do que o sol; a cujos olhos
o mais pequeno verme iguala ao homem,
e a Natura descobre os seus arcanos;
tu, que o meu coração penetrar podes,
115
julga tu só e vê se são meus erros
iguais às minhas dores.
Enganar-te, oh meu Deus, não pode o homem!
se feia iniqüidade nele habita,
se mereço o que sofro, ah deixa, deixa
120
que os inimigos meus de mim se vinguem.
Não me atendas, Senhor; meus ais despreza.
deixa expiar meus erros
na terra, onde este pó ao mal me prende,
antes que eu suba ao tribunal eterno.
125
Mas se fala a inocência em meu socorro,
mostra a verdade, salva-me, e absolve
aqueles que me infamam;
que eu os perdôo, oh Deus; por ti o juro;
sou Cristão; -e o Cristão sofre, e perdoa.
130
A consolação
O qu'hei de eu responder? Não, oh meus lábios,
não reveleis arcanos de minha alma,
não crimineis os homens;
queixas inúteis são; lábios, calai-vos.
A quem não sente o mal, que importa o alheio?
10
Não; não sou desgraçado. Estas
profundas
dores que me aguilhoam d'alma os seios.
são os sinais de uma lição do mundo.
Sinto a dor, mas sou grato à Providência,
que destarte me instrui, como mãe terna,
15
que só para ensinar o filho pune.
No mais íntimo d'alma o virtuoso
acha quem o console na desgraça.
desgraçado, és tu só, tu
miserável,
tu, que não do assassino o punhal temes,
20
mas o punhal da própria consciência.
Lei é da Humanidade, e não do acaso;
sofrer, sempre sofrer é seu destino.
A Natureza o homem bruto cria,
o mundo o aperfeiçoa
25
com dores e trabalhos.
Como se brunem com o atrito os seixos
no revolver das ondas,
ou como no crisol, à chama exposta,
se purifica a prata,
30
destarte, entregue à dor, doma-se o homem.
O templo da verdade o erro escolta,
armado de punhais, e de flagícios;
e antes que a Humanidade entrever possa
um claro lume do seu divo rosto,
35
ah quantos são primeiro
tristes vítimas do erro,
servindo de degraus da luz ao ingresso!
Nossos olhos lancemos ao passado,
e co'o fanal da história descubramos
40
quantos martírios nossos pais sofreram.
Tudo o que vemos nada é mais que a luta
da verdade, e do erro.
A verdade, que herdada hoje gozamos,
assaz regada foi com sangue humano;
45
por nós dezoito séculos lutaram,
e nós pelo porvir lutamos hoje.
Não é fora do mundo,
engolfado em prazeres que embriagam,
em brando leito lânguido estendido,
50
rodeado de escravas, que o incensam,
como um rei do Oriente; nem na mesa
de esplêndido banquete, qual Lúculo,
que se colhem lições da experiência.
Não; engana-se aquele, que Epicuro
55
mal interpreta, e diz: Eia, gozemos;
a vida no prazer cifra-se toda.
É nos cárceres só, é nos
perigos,
quando ao exílio marcha o justo Aristides,
quando Homero chorado pão esmola,
60
quando no cárcer galileu medita,
quando do trono avito um rei baqueia;
a experiência então a voz levanta:
Sólon, Sólon, Sólon, bem mo dizias!
Do passado a lembrança é morta idéia;
65
a experiência só, a experiência,
dura, severa mestra,
por caminhos de dores, entre espinhos,
guia o incerto passo
do mortal que viaja sobre a terra.
70
a dor é da verdade companheira;
quem busca a experiência, a dor encontra.
Por que pois lamentar se a dor é útil?
se ela é núncia de um mal, de que nos cumpre
fugir, ou evitar assaltos novos?
75
O fogo que ao infante o dedo queima,
a refletir o ensina, enquanto os mimos
da terna mãe mil vezes o corrompem.
Oh desgraçado aquele
que jamais suportou uma só mágoa,
80
e que de gozo em gozo vê seus dias
correr tranqüilamente;
como a flor nasce, e morre,
mas como a flor também nada conhece;
existe, mas não vive,
85
que é, sem dor, o prazer uma quimera.
Para vermos a luz, que ânsias, que dores
não sofrem nossas mães? Mas nesse instante
as dores maternais, nascendo, herdamos.
Glória, fama, saber dores nos custam;
90
até o último expiro a dor nos segue;
e quem sabe se à dor põe termo a morte?
Como é feliz aquele que levanta
seu espírito a Deus, e com fé pura,
no meio da tormenta,
95
que o mundo sem cessar contra nós arma,
do céu auxílio espera,
enquanto sem conforto, entregue à raiva,
blasfema o ímpio contra Deus, e os homens.
Feliz quem assoberba a iníqua sorte;
100
e, para o consolar, acha a virtude,
que benéfica brilha,
como em negra soidão plácido lume
alma esperança gera, prometendo
asilo ao peregrino afadigado.
105
Feliz, feliz mil vezes, quem tranqüilo
não ouve o apuridar da consciência,
e um só crime exprobrar-lhe!
E no leito da paz, ou na masmorra,
não vê punhais em sonhos, nem fantasmas.
110
Mesmo quando os ruins dores lhe causem,
como Guatemosino atado, e posto
sobre estendidas, chamejantes brasas,
com os olhos no céu, sereno exclama:
Num leito estou de rosas!
115
Entre afiadas rodas, açoutado
com lâminas de ferro;
na cadeia, no circo, e na fogueira,
ou alvo da calúnia,
o justo não stá só,
120
Deus é com ele.
Cadeias, circo, infâmia, fogo, e morte,
tudo supera o justo.
Como as nuvens pejadas de vapores
exalados da terra
125
do coruscante sol a face cobrem,
e por um pouco a Natureza enlutam;
mas depois da tremenda tempestade,
de mais belo cetim o céu se arreia,
e o sol raios dardeja mais brilhantes,
130
assim depois da angústia, e da calúnia
a inocência triunfa acrisolada.
Ah! não nos lamentemos;
que quanto mais se sofre mais se alcança.
A dor só para o iníquo é um tormento.
135
de Zeno as leis seguindo,
como se a não sentíssemos, vivamos;
Deus existe, e nos vê; Deus só nos julga.
Paris, 5 de setembro de 1834
A vida da inocência
É uma aurora rosada,
5
um sonho delicioso,
para quem o arcano ignora
deste mundo caviloso.
É um mel suave e grato
para quem no lar paterno,
10
co'a bênção dos seus maiores,
recebe a bênção do Eterno.
É um celeste tesouro
para a tenra criatura,
que vive como tu vives,
15
vida dos Anjos tão pura.
Só vive assim a inocência
de Deus amada e querida!
Oh inocência! perfume!
Oh doce orvalho da vida!
20
Filha de pais virtuosos,
luminosa é tua estrela!
Vive para ornar o mundo,
feliz, inocente e bela.
A sepultura de Filinto Elísio
No Cemitério do Père La Chaise
Cenas aqui não há, que aprazer possam
5
aos sentidos daqueles, que embebidos
nas ilusões do mundo, a morte temem,
como o completo termo da existência;
cegos, que a luz não viram do infinito!
À sombra destas árvores chorosas,
10
encostado a um sepulcro,
ócio não pasta o rico em sesta amena;
nem quem o vero bem no engano cifra
deste vale de angústias.
À dor esta mansão é consagrada,
15
e à saudade, e às lágrimas dos vivos,
que a Deus, e à Eternidade a mente sobem.
Aqui, sim, oh minha alma, aqui te exalta;
solta as prisões do barro que te oprime,
e vaga sem horror na imensidade.
20
Estas ruas de túmulos soberbos,
que cidade figuram,
só corruptos cadáveres habitam,
poeira, nomes, e ossos descarnados.
Os mortos que nos mármores repousam,
25
não te encham de terror; nem os gemidos
de alguma triste esposa, ou mãe saudosa;
nem do vento o murmúrio,
que merencório soa entre os ciprestes.
nada temas, minha alma;
30
preconceitos da infância te não gelem;
não; sem susto vagueia;
mal não fazem os mortos;
só entre os vivos o temor é justo.
Oh Filinto! Oh Filinto!
35
Onde estás?... Escutemos...
Aqui nem mesmo os ecos me respondem.
Oh meu Filinto, é esta a vez terceira,
que incansável te busco.
De um em um tenho lido os epitáfios
40
destas fúnebres lousas;
o teu só não encontro.
Onde é que a ingratidão da injusta
Pátria,
dessa Pátria que honraste
co'os teus divinos carmes,
45
cavou-te a humilde sepultura? -Onde?
Dela ausente, proscrito, na miséria,
como Camões viveste;
saudoso, e só por ela suspirando,
monumentos ergueste à glória sua;
50
e surda sempre foi aos teus gemidos;
como Camões morreste na indigência!
Mas ele ao menos expirou na Pátria!
Terra da Pátria recebeu seus ossos;
e tu? -Nem ela sabe onde repousas!
55
Oh desgraçada Lísia!
Ingrata mãe de heróis, de egrégios
vates,
assim desleixas teus preclaros filhos,
que em fadigas se afanam
por cingir-te de brilho imarcescível?
60
Teu vate, teu cantor já te exprobrara,
quando com rouca voz assim dizia,
e não do longo canto afadigado,
mas de cantar à gente endurecida:
«O calor, com que mais se acende o engenho,
65
não o dá a Pátria, não; que
está metida
no gosto da cobiça, e na rudeza
de uma austera, apagada e vil tristeza.»
No Universo estas vozes ressoaram;
línguas cem estas vozes repetiram;
70
e o que fizeste, oh Lísia?
Chamaram-te madrasta, e mãe tirana;
e hoje? -inda és a mesma!
Oh Pátria minha, o meu Brasil, não sejas
como Lísia cruel para teus filhos.
75
Ligado à sorte sua, tu suportaste
sec'los três os grilhões do cativeiro;
mas já que sacudiste a espessa treva,
que os olhos te vendava,
da tua antiga Irmã vê as misérias,
80
e de imitá-la teme.
Vejamos. -Estes mirtos tão viçosos
ornar devem de um vate a sepultura.
Oh será ele? -Não; aqui descansa
o coração de um filho.
85
Não afrouxemos, vamos; que assim marcha
a Humanidade inteira,
sem nunca repousar, sobre relíquias
das gerações extintas.
Cada casa é um túmulo; e de sangue,
90
lugar não há na terra,
que manchado não fosse.
Um dia chegará a Humanidade
ao limite que Deus lhe prescrevera.
Não descansemos; vamos,
95
enquanto a sepultura não acharmos
de Filinto, que há tanto procuramos.
Luísa e Abeilard inda no mármore,
juntos, da morte o eterno sono dormem,
neste gótico túmulo; mil c'roas
100
suas estátuas cobrem, que os amantes
a seus pés depositam.
Qu'eu não possa pagar igual tributo!
Amor, tu me desdenhas;
nunca um ósculo teu rociou meus lábios;
105
nunca de virgem olhos condoídos
sobre mim almas chamas espargiram;
ah nunca fui amado!
Nascido para a dor, jamais minha alma
em delícias de amor sonhou ao menos!
110
Que ilustres nomes estas lousas mostram!
estátuas, bustos, inscrições só
vejo
de prestantes varões, de egrégios vates.
Ao lado deste túmulo pomposo,
onde d'Arte o primor ofusca o nome
115
daquele que mimoso foi da sorte,
como a meu coração fala sublime
esta Cruz negra à sombra de um cipreste!
O sol desmaia; e precursor da noite
cinéreo véu nos ares desenrola-se.
120
Já fraqueio, e suor transuda a fronte.
Deixarei estes sacros aposentos,
sem que te encontre, o cândido Filinto?
Serei tão malfadado, que esta c'roa
depositar não possa em tua campa,
125
e sobre ela chorar, gravar meu nome?
Ah não desesperemos;
mais um esforço. -Enfim, é ela, é ela!
Nem sequer um cipreste, um mirto a cobre!
Já lisa a pedra pelo pé do tempo
130
mal indica que teve um epitáfio.
Ingrata Pátria! Ingrata!
O tempo ao menos, carcomendo a lájea,
tua vergonha oculta ao estrangeiro.
Oh meu Deus! aqui jaz desconhecido
135
quem cantou dos teus Mártires a glória
em altíssono metro harmonioso!
Reverente ante a tua sepultura,
oh Filinto, tu vês um triste filho,
que choroso, da Pátria ausente vive.
140
Jovem, talvez ardido, ousei na lira
os dedos aplicar, seguir teus vôos:
Sons, que desfiro rústicos, consagro
em holocausto a Deus, e à Pátria minha.
da celeste Sião, onde tua alma
145
fulgurante resplende,
um raio de estro à minha mente vibra.
Recebe esta coroa,
estas folhas recebe,
que viçosas colhi na sepultura
150
do imortal La Fontaine, a quem honraste.
Quiçá prima homenagem sejam elas
que ao manes teus humana mão tribute.
Possa o tempo guardar estes, que escrevo,
tristes versos, até que um Luso os leia.
155
Uma lágrima dai, oh Portugueses,
uma lágrima ao menos a Filinto,
ao desgraçado velho.
Assaz honrou à Pátria;
em prêmio exílio teve. -Adeus, Filinto.
160
«Que exemplos pra futuros escritores!»
Paris, 28 de setembro de 1834
Uma manhã no monte jura
Íngreme, escabrosíssimo, impossível
parece que o vinguemos;
5
mas se à forte vontade a ação se aduna,
o que há na terra que resista ao homem?
Eia, Amigo, subamos.
Já as flores da noite alvinitentes,
que o firmamento esmaltam,
10
a desmaiar começam, só co'a vista
dos arrebóis d'aurora.
Da terra alvos vapores se levantam
condensados, e no ar se desnovelam,
montes bosquejam, mares, e cidades,
15
e nos campos se perdem do infinito,
como agora se perde o pensamento
na vastidão de idéias, em que vaga.
Subamos do rochedo até ao cume;
lá, respirando um ar puro e suave,
20
recebendo do sol os primos raios,
louvores ao Altíssimo entoemos.
Subamos. -Que vastíssima paisagem!
Que cadeias de montes araçados,
e como torreões, grimpas, espectros,
25
às nuvens se levantam!
Que tapetes de vinhas se desdobram,
e as várzeas, e as encostas alcatifam!
Que escuros tetos de mesquinhas vilas
salpicadas aqui, e ali, quais combros
30
de terra, que formigas amontoam!
De tantas sensações extasiada,
minha alma se sublima, e se converte
num hino harmonioso,
em louvor do Senhor da Natureza.
35
A lucífera estrela ali fulgura;
lá se ergue o Sol num Oceano de ouro,
de rubins ondeado!
Tu, que iluminas mil milhões de povos,
que outros tantos baixar tens visto ao nada,
40
e outros tantos subir ao grau daqueles;
cem, e cem vezes eu te vi radiante
atravessar contente e vagaroso
de minha Pátria os campos,
os serros, e as cidades,
45
como se, lei não sendo o movimento,
eterno no Brasil brilhar quisesses.
Oh Sol, ind'ontem viste essa ditosa
pátria, por quem suspiro aqui saudoso;
pátria, por quem me afano; mas se embalde,
50
longe dela acabar prefiro ao opróbrio
de vê-la, e ser-lhe inútil.
Não, oh Pátria, não estou de ti
distante;
comigo estás, é teu meu pensamento.
um desejo violento, irresistível,
55
como a enchente, que de alto se desaba,
todo me ocupa, e o coração me abala;
desejo de te ver no orbe cantada
como a primeira das Nações da terra.
Descansemos, Amigo,
60
descansemos um pouco, que é difícil
por não trilhadas, perigosas sendas,
sem fadiga vencer tal penedia.
Olha, vês tu aquele que pasmado
debaixo nos contempla, e se confunde,
65
envolto na poeira,
co'as pequenas ovelhas que apascenta?
Quiçá de nós dizendo esteja agora:
Eis dos homens té onde o arrojo chega!
Por que a plana estrada desprezaram,
70
onde sem risco todos nós marchamos,
para perigos afrontar ousados?
Cairão, cairão; serão punidos...
Assim mesquinhos entes invejosos,
tristes aves de agouro,
75
que no charco comum patinham, grasnam,
quando vêm remontar altivos gênios
às sublimes esferas,
esses, cuja missão é o progresso,
e das mãos arrancar da Natureza
80
novas, úteis verdades,
clamam, praguejam, mas no charco morrem;
enquanto que de céu em céu voando,
de Nação em Nação, de povo em
povo,
da Humanidade os astros benfeitores,
85
em torno a Deus, na Eternidade pairam
de própria luz radiantes.
Trabalhemos, Amigo, pela Pátria,
só por amor da Pátria,
e entreguemos a Deus nosso destino.
90
Se à região dos astros não subirmos,
pirilampos seremos nos desertos,
e aos nossos reunidos, luz daremos,
que nas trevas talvez ao desgarrado
viajor encaminhe.
95
Trabalhemos, Amigo, pela Pátria,
só por amor da Pátria,
e entreguemos a Deus nosso destino.
Ah subamos ainda,
e cheguemos ao tope da montanha.
100
Esta pedra que cai, bate, e reflete,
e assim de curva em curva saltitante,
vai rolando, e batendo, até que chega
desfeita em mil pedaços,
é a imagem dos seres subalternos,
105
que só grandes parecem pela altura,
em que a cega ignorância os colocara;
mas quando se despenham, desaparecem,
sem que se abale o mundo; nem arrastam
satélites consigo,
110
a não ser a poeira
que só os rodeava.
Assim muitos colossos se abismaram,
colossos de vaidade:
Assim se enterrarão no eterno olvido
115
muitos que a Pátria nossa inda hoje oprimem
co'o peso da ignorância.
Nossa Pátria tão bela! -Nossa Pátria
tão digna de um porvir grande e sublime!
Ei-la, como um cadáver de gigante,
120
roída por milhões de vis insetos,
que ela mesma alimenta!
Olha, Amigo, esta pálida saudade,
que nesta penedia a custo vive.
Aqui não é que vegetar devia
125
flor tão cara à minha alma.
Vês tu como ela pende a roxa fronte
mal que a colho, e a coloco no meu peito?
Como ela o coração, sofrendo a mágoa
que o nome dela explica,
130
longe da Pátria, em que meus pais habitam,
de languidez se encolhe.
Irás comigo, oh flor, terna saudade,
inda que murcha e seca; -irás comigo,
e acabaremos juntos.
135
Poligny, 7 de outubro de 1834
A vista de Roma
Entre suas ruínas, majestosa
inda Roma se ostenta.
Inda seu nome impõe respeito ao mundo,
e entusiasmo gera.
Mas Roma entre ruínas se me antolha
10
como essa arrependida penitente,
que a vã pompa do mundo desprezando,
a cruz do Redentor humilde abraça.
em vez de capacete, esparsa a coma;
em vez de cetro, cruz; o márcio riso
15
não mais lhe habita os lábios,
nem lampejantes olhos mais incutem
terror, vingança, e morte.
religiosa dor hoje a sublima,
e a veste de candura, e de beleza.
20
Rainha das Nações, eu te saúdo!
Mãe ilustre de heróis do mundo espanto!
Eu te vejo, e minha alma inda duvida!
E não sentida comoção me abala.
Esta vermelha terra, árida e seca,
25
qu'inda exala mortíferos vapores;
este inculto deserto abandonado
dos homens, e das feras,
onde uma flor sequer não ri-se ao menos;
esta desolação, esta tristeza,
30
este horror sepulcral, que em torno gira
da senhora do mundo,
tudo alfim aqui fala, e os olhos mostra
as sangrentas tragédias, que juncaram
estes campos outrora.
35
De tanto sangue humano que a ensopara,
de tanto ferro gasto que a cobrira,
conserva ainda a cor a terra estéril!
Por que nuvens de corvos esvoaçam
nestes ares pejados de vapores?
40
Por que arrancam gemidos dolorosos,
que as carnes, e os cabelos arrepiam,
como se eles um mal também carpissem?
Odor carnificino
ainda exalarão de Roma os campos?
45
É que não acham mais sangue que bebam!
Cadáveres que os cevem!
Que Romano saído do sepulcro
reconhecer-te, oh Roma, poderia
que viajor, entrando em tuas portas,
50
não dirá: Onde estou? onde está Roma?
Se uma voz respondesse: Eis aqui Roma.
como não exclamar cheio de assombro:
Que maldição do céu caiu sobre ela!
Também têm as Nações suas idades.
55
Jovem já foste, oh Roma!
Já guerreiro vigor armou-te o braço;
já tremeram de ti milhões de povos.
Fatigada de glória, e já curvada
entre tuas ruínas,
60
hoje tu tremes, como uma Rainha
anosa sobre o trono,
que em anos juvenis calcara ufana.
Hoje só em teu Deus arrimo encontras;
só a Religião te ampara a fronte,
65
que co'o peso dos séculos já pende.
Sem este novo Deus morta já foras.
Teus velhos deuses a paixões sujeitos,
teus senhores, teus Neros, e teus filhos,
degenerada raça
70
dos Brutos, e Catões, raça maldita,
nos mais nefandos crimes só nutrida,
tudo alfim te arrastava ao horror, e à morte,
e te ia despenhar na sepultura.
Mas um Deus novo te salvou do abismo;
75
novas virtudes deu-te, graças novas,
e tu por ele só inda hoje vives.
Da guerra o Gênio que nas pugnas vela,
e o pacífico Gênio que aos destinos
dos Impérios preside,
80
entorpecidos de fadigas tantas,
entre a poeira das ruínas tuas,
cobertos de lauréis, prostrados jazem.
Co'a espada o antigo mundo amedrontavas,
co'a Ciência, e a Razão guiaste o novo;
85
sim; a glória perdeste dos combates,
mas alcançaste da Ciência a glória.
Ignora o mundo teu porvir augusto,
que ao mundo oculta Deus seu pensamento;
mas tu despertarás à voz de um Gênio,
90
do sono em que te abismas.
Dorme, dorme, que o Tempo não perece;
dorme, que um dia te erguerás mais bela;
dorme, até que a trombeta do teu Anjo
no mausoléu ressoe de Adriano.
95
Os desígnios de Deus serão cumpridos;
não, tu não morrerás, cidade eterna.
Roma, dezembro de 1834