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Suspiros poéticos e saudades
Domingos José Gonçalves de
Magalhães
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Pede o uso que se dê um prólogo ao livro, como um
pórtico ao edifício; e como este deve indicar por sua
construção a que divindade se consagra o templo, assim deve
aquele designar o caráter da obra. Santo uso de que nos aproveitamos
para desvanecer alguns preconceitos, que talvez contra este livro se elevem em
alguns espíritos apoucados.
É um livro de poesias escritas segundo as impressões
dos lugares; ora sentado entre as ruínas da antiga Roma, meditando sobre
a sorte dos impérios; ora no cimo dos Alpes, a imaginação
vagando no infinito como um átomo no espaço; ora na gótica
catedral, admirando a grandeza de Deus e os prodígios do cristianismo;
ora entre os ciprestes que espalham sua sombra sobre túmulos; ora,
enfim, refletindo sobre a sorte da pátria, sobre as paixões dos
homens, sobre o nada da vida. São poesias de um peregrino, variadas como
as cenas da natureza, diversas como as fases da vida, mas que se harmonizam
pela unidade do pensamento e se ligam como os anéis de uma cadeia;
poesias d'alma e do coração, e que só pela alma e o
coração devem ser julgadas.
Quem ao menos uma vez separou-se de seus pais, chorou sobre a campa
de um amigo, e armado com o bastão de peregrino, errou de cidade em
cidade, de ruína em ruína, como repudiado pelos seus; quem no
silêncio da noite, cansado de fadiga, elevou até a Deus uma alma
piedosa, e verteu lágrimas amargas pela injustiça, e
misérias dos homens; quem meditou sobre a instabilidade das coisas da
vida e sobre a ordem providencial que reina na história da humanidade,
como nossa alma em todas as nossas ações; esse achará um
eco de sua alma nestas folhas que lançamos hoje a seus pés, e um
suspiro que se harmonize com o seu suspiro.
Para bem se avaliar esta obra, três coisas releva notar: o
fim, o gênero e a forma.
O fim deste livro, ao menos aquele a que nos propusemos, que
ignoramos se o atingimos, é o de elevar a poesia à sublime fonte
donde ela emana, como o eflúvio d'água, que da rocha se
precipita, e ao seu cume remonta, ou como a reflexão da luz ao corpo
luminoso; vingar ao mesmo tempo a poesia das profanações do
vulgo, indicando apenas no Brasil uma nova estrada aos futuros engenhos.
A poesia, este aroma d'alma, deve de contínuo subir ao
Senhor; som acorde da inteligência deve santificar as virtudes e
amaldiçoar os vícios. O poeta, empunhando a lira da razão,
cumpre-lhe vibrar as cordas eternas do santo, do justo e do belo.
Ora, tal não tem sido o fim da maior parte dos nossos poetas;
e o mesmo Caldas, o primeiro dos nossos líricos, tão cheio de
saber e que pudera ter sido o reformador da nossa poesia, nos seus primores
d'arte, nem sempre se apoderou desta idéia; compõe-se uma grande
parte de suas obras de traduções; e quando ele é original
causa mesmo dó que cantasse o homem selvagem de preferência ao
homem civilizado, como se aquele a este superasse, como se a
civilização não fosse obra de Deus, a que era o homem
chamado pela força da inteligência com que a Providência dos
mais seres o distinguira!
Outros apenas curaram de falar aos sentidos; outros em quebrar todas
as leis da decência!
Seja qual for o lugar em que se ache o poeta, ou apunhalado pelas
dores, ou ao lado de sua bela, embalado pelos prazeres; no cárcere, como
no palácio; na paz, como sobre o campo da batalha; se ele é
verdadeiro poeta, jamais deve esquecer-se de sua missão, e acha sempre o
segredo de encantar os sentidos, vibrar as cordas do coração, e
elevar o pensamento nas asas da harmonia até as idéias
arquetípicas.
O poeta sem religião e sem moral, é como o veneno
derramado na fonte, onde morrem quantos procuram aí aplacar a sede.
Ora, nossa religião, nossa moral é aquela que nos
ensinou o Filho de Deus, aquela que civilizou o mundo moderno, aquela que
ilumina a Europa e a América: e só este bálsamo sagrado
devem verter os cânticos dos poetas brasileiros.
Uma vez determinado e conhecido o fim, o gênero se apresenta
naturalmente. Até aqui, como só se procurava fazer uma obra
segundo a arte, imitar era o meio indicado: fingida era a
inspiração, e artificial, o entusiasmo. Desprezavam os poetas a
consideração se a mitologia podia, ou não, influir sobre
nós: contanto que dissessem que as musas do Hélicon os
inspiravam, que Febo guiava seu carro puxado pela quadriga, que a aurora abria
as portas do Oriente com seus dedos de rosas, e outras tais e quejandas imagens
tão usadas cuidavam que tudo tinham feito, e que com Homero
emparelhavam; como se pudesse parecer belo quem achasse algum velho manto grego
e com ele se cobrisse; antigos e safados ornamentos, de que todos se servem, a
ninguém honram.
Quanto à forma, isto é, à
construção, por assim dizer, material das estrofes e de cada
cântico em particular, nenhuma ordem seguimos, exprimindo as
idéias como elas se apresentaram, para não destruir o acento da
inspiração; além de que a igualdade dos versos, a
regularidade das rimas e a simetria das estâncias produzem uma tal
monotonia e dão certa feição de concertado
artifício que jamais podem agradar. Ora, não se compõe uma
orquestra só com sons doces e frautados; cada paixão requer sua
linguagem própria, seus sons imitativos, e períodos
explicativos.
Quando em outro tempo publicamos um volume das poesias da nossa
infância, não tínhamos ainda assaz refletido sobre estes
pontos e em quase todas estas faltas incorremos; hoje, porém, cuidamos
ter seguido melhor caminho. Valha-nos ao menos o bom desejo, se não
correspondem as obras ao nosso intento; outros mais mimosos da natureza
farão o que não nos é dado.
Algumas palavras acharão neste livro que nos
dicionários portugueses se não deparam; mas as línguas
vivas se enriquecem com o progresso da civilização e das
ciências, e uma nova idéia pede um novo termo.
Eis as necessárias explicações para aqueles que
lêem de boa-fé, e se aprazem de colher uma pérola no meio
das ondas; para aqueles, porém, que com olhos de prisma tudo
decompõem, e como as serpentes sabem converter em veneno até o
néctar das flores, tudo é perdido; o que poderemos nós
dizer-lhes?... Eis mais uma pedra onde afiem suas presas, mais uma taça
onde saciem sua febre de escárnio.
Este livro é uma tentativa, é um ensaio; se ele
merecer o público acolhimento, cobraremos ânimo, e continuaremos a
publicar outros que já temos feito, e aqueles que fazer poderemos com o
tempo.
É um novo tributo que pagamos à pátria,
enquanto lhe não oferecemos coisa de maior valia; é o resultado
de algumas horas de repouso, em que a imaginação se dilata, e a
atenção descansa, fatigada pela seriedade da ciência.
Tu vais, ó livro, ao meio do turbilhão em que se
debate nossa pátria; onde a trombeta da mediocridade abala todos os
ossos, e desperta todas as ambições; onde tudo está
gelado, exceto o egoísmo: tu vais, como uma folha no meio da floresta
batida pelos ventos do inverno, e talvez tenhas de perder-te antes de ser
ouvido, como um grito no meio da tempestade.
Vai; nós te enviamos cheios de amor pela pátria, de
entusiasmo por tudo o que é grande e de esperanças em Deus e no
futuro.
Adeus!
Paris, julho de 1836
Invocação ao anjo da poesia
Quando da noite o véu caliginoso
do mundo me separa,
e da terra os limites encobrindo,
vagar deixa minha alma no infinito,
como um subtil vapor no aéreo espaço,
5
uma angélica voz misteriosa
em torno de mim soa,
como o som de uma frauta harmoniosa,
que em sagradas abóbadas reboa.
donde vem esta voz? -Não é de virgem,
10
que ao prazo dado o bem-amado aguarda,
e mavioso canto aos céus envia;
esta voz tem mais grata melodia!
Donde vem esta voz? -Não é dos Anjos,
que leves no ar adejam,
15
e com hinos alegres se festejam,
quando uma alma inocente
deixa do barro a habitação escura,
e na sidérea altura,
como um astro fulgente
20
penetra de Adonai o aposento;
a voz que escuto tem mais triste acento.
Como d'ara turícrema se exalça
nuvem de grato aroma que a circunda,
e lenta vai subindo
25
em faixas ondeantes,
nos ares espargindo
partículas fragrantes,
e sobe, e sobe, até no céu perder-se,
tal de mim esta voz parece erguer-se.
30
Sim, esta voz do peito meu se exala!
Esta voz é minha alma que se espraia,
é minha alma que geme, e que murmura,
como um órgão no templo solitário;
minha alma, que o infinito só procura,
35
e em suspiros de amor a seu Deus se ala.
Como surdo até hoje
fui eu a tão angélica harmonia?
Porventura minha alma muda esteve?
Ou foram porventura meus ouvidos
40
até hoje rebeldes?
Perdoa-me, oh meu Deus, eu não sabia!
Eram Anjos do céu que me inspiravam,
e outras vozes meus lábios modulavam.
Castas Virgens da Grécia,
45
que os sacros bosques habitais do Pindo!
Oh Numes tão fagueiros,
que o berço me embalastes
com risos lisonjeiros,
assaz a infância minha fascinastes.
50
Guardai os louros vossos,
guardai-os, sim, qu'eu hoje os renuncio.
Adeus, ficções de Homero!
Deixai, deixai minha alma
em seus novos delírios engolfar-se,
55
sonhar co'as terras do seu pátrio Rio.
Só de suspiros coroar-me quero,
de saudades, de ramos de cipreste;
só quero suspirar, gemer só quero,
e um cântico formar co'os meus suspiros;
60
assim pela aura matinal vibrado
o Anemocórdio, ao ramo pendurado,
em cada corda geme,
e a selva peja de harmonia estreme.
Já nova Musa
65
meu canto inspira;
não mais empunho
profana lira.
Minha alma, imita
a Natureza;
70
quem vencer pode
sua beleza?
De dia, e noite
louva o Senhor;
canta os prodígios
75
do Criador.
Tu não escutas
esta harmonia,
que ao trono excelso
a terra envia?
80
Tu não reparas
como o mar geme,
como entre as folhas
o vento freme?
Como a ave chora,
85
a ovelha muge,
o trovão brama,
o leão ruge?
Cada qual canta
ao seu teor,
90
mas louvam todos
o seu Autor.
Da grande orquestra
aumente o brilho
o Canto humano
95
da razão filho.
Minha alma, aprende,
louva a teu Deus;
os teus suspiros
envia aos céus.
100
Oh como é belo o céu azul sem nódoa!
Que puro amor nos corações ateia,
como a pupila de engraçada virgem,
que serena nos olha, e nos enleia.
Mas que imagem sublime a mim se antolha,
105
com largas asas brancas como o cisne,
e roçagante toga, que se ondeia
como flocos de neve alabastrina!
Uma harpa de ouro em suas mãos sustenta!
Oh que voz suavíssima e divina!
110
Oh que voz, que as paixões n'alma adormenta!
Vem, oh Gênio do céu filho!
Vem, oh Anjo d'harmonia!
Cuja voz é mais suave,
mais fragrante que a ambrosia!
115
Teu rosto vence em beleza
ao sol no zênite luzente;
teu largo manto é mais puro
do que a lua alvinitente.
As asas, que te suspendem,
120
são mais ligeiras que o vento;
são mais terríveis que os raios,
que giram no firmamento.
Tua fronte não se adorna
com flores que o prado gera;
125
sobre teus cabelos de ouro
brilha de fogo uma esfera.
Teus pés a terra não tocam,
a teus pés a terra é dura;
sobre aromas te equilibras
130
recendentes de frescura.
O sol, a lua, as estrelas
são fanais que te iluminam,
são corpos a quem dás vida,
e ante teus passos se inclinam.
135
Os acordos de tua harpa
todos os astros ecoam;
reanima-se o Universo,
quando as suas cordas soam.
Vem, oh Anjo, ungir meus lábios;
140
traze-me uma harpa dos céus;
ao som dela subir quero
meus suspiros até Deus!
Quando no Oriente roxear a Aurora,
como um purpúreo, auribordado manto,
145
que ao Rei da luz o pavilhão decora,
e as saltitantes aves pelos ramos
da madrugada o hino gorjearem,
tua voz, oh minha alma, une a seu canto,
e as graças do Senhor cantando exora.
150
Quando a noite envolver a Natureza
em tenebroso crepe; e sobre a terra
as asas desdobrar morno silêncio;
nessas plácidas horas de repouso,
em que tudo descansa, exceto o Oceano,
155
que arqueja, e espuma em solitária praia,
vizinhos ermos com seus ais pejando,
como um preso que geme, e que debalde
da prisão contra os muros se arremessa;
tu também, como a lua, vigilante
160
nessas propícias horas, oh minha alma,
tua voz gemebunda exala, e une
à voz do Oceano, à voz d'ave noturna.
Enquanto estás sobre a terra,
como no exílio o proscrito,
165
canta como ele, que o canto
refrigera o peito aflito.
Canta, que os Anjos te escutam,
e os Anjos à terra descem,
a escutar esses hinos,
170
que para Deus almas tecem.
Canta a todos os momentos,
canta co'a noite, e co'o dia;
e o teu derradeiro expiro
seja ainda uma harmonia.
175
Por que cantas, oh Vate? por que cantas?
Qual é tua missão? O que és tu mesmo?
Para ti nada é morto, nada é mudo;
co'o sol, e o céu, e a terra, e a noite falas.
Tudo te escuta; e para responder-te,
5
do passado o cadáver se remove,
e do túmulo seu a fronte eleva;
o presente te atende; e no futuro
eternos vão soar os teus acentos!
Quando o vento em furor açouta as comas
10
dos brasílicos bosques, voz tremenda
igual a do trovão ao longe atroa,
e uma nuvem de flores se levanta,
que o ar com seus eflúvios embalsama;
assim, quando te agita o entusiasmo,
15
dos lábios teus emana alma torrente
troante e recendente de perfumes.
De mágico poder depositário,
qual um gênio entre os homens te apresentas.
Ante ti não há rei, nem há vassalo;
20
tu nos homens só vês virtude, ou vício.
Como um déspota, ufano em teus delírios,
uns cercas de imortal auréola tua,
outros condenas ao opróbio, e à morte.
Umas vezes soberbo, impetuoso,
25
qual águia que sublime o céu devassa,
e do céu sobre a terra os olhos desce,
teu ígneo, alado gênio, no ar suspenso:
Não, oh mortais, não vos pertenço,
(exclama)
eu sou órgão de um Deus; um Deus me inspira;
30
seu intérprete sou; oh terra! ouvi-me.
Outras vezes, nas selvas meditando,
sobre um tronco sentado, junto a um rio,
que embalança da lua a argêntea cópia;
como entre as folhas sussurrante vento
35
gemer parece, e de algum mal carpir-se,
tu gemes, e co'o verme te comparas,
que arrasta pelo chão a inútil vida;
e vês nas águas, que a teus pés
deslizam,
a imagem de teus dias fugitivos.
40
Fogem os dias como as águas fogem;
mas da lua o clarão, que a água reflete,
sem do lugar fugir, brilhando fica;
tal sobre a terra, onde escoara a vida,
resta do Vate a rutilante glória!
45
Quando ouve o sabiá troar nas várzeas
do fero caçador a mortal arma,
sufoca o sabiá seu canto, e foge:
Assim tu emudeces, quando estruge
da civil guerra, e da discórdia o grito.
50
Mas quando à Pátria o inimigo insulta,
armando o braço, e reforçando o peito,
no meio dos combates te arremessas,
como o raio que estronda, e fere, aclara,
e após teus cantos a vitória marcha.
55
Vate, o que és tu? És tu mortal ou Nume?
Que Deus te abala o peito, e te enfurece,
quando, como um vulcão que estoura em lavas
que acesas rolam, tua voz desatas?
Oh como é grande o Vate, que arrojado
60
da terra s'ergue como a labareda,
e vagando no céu como um meteoro,
dos lábios solta a voz, e a vibra em raios,
que o vício, e o crime ferem, pulverizam!
Canta, oh Vate! sagrados são teus cantos;
65
canta, que o céu te inspira, o céu te inflama;
canta, que apesar seu, te escuta o mundo,
e o vício de te ouvir treme de medo.
Não, não és um mortal quando tu cantas!
és o Arcanjo da justiça eterna!
70
Lâmina acesa, fulminante empunhas,
com que prostras por terra a fronte ao crime,
com outra mão elevas o homem justo.
Ou tu cantes a guerra, ou. amor cantes,
ou louves do Senhor as maravilhas;
75
ou do céu as angélicas belezas,
ou do inferno os horrores nos retrates;
ou sobre o esquife de um amigo chores,
ou enfeites a campa da inocência;
sempre teus versos, qual nectáreo rócio,
80
de inefável prazer a alma me embebem!
Ah não profanes o teu gênio, oh Vate!
O incenso só no altar queimar-se deve!
Em lago impuro não se banha o cisne,
que manchar teme a cândida plumagem.
85
Imita o cisne; e como sempre as flamas
sobem ao céu, ao céu teus hinos subam.
As riquezas que a terra oh avaro ofrece,
mais valor para ti que o céu não tenham;
as riquezas da terra ao Vate servem
90
para imagem da mística linguagem,
como ao belo ideal dão vida as cores.
No dia em que da lira sons forçados
venderes ao tirano em troco de ouro,
nesse dia o céu deixa de inspirar-te;
95
quebra essa lira, e cessa de ser Vate.
Quando a virgem do sol seu voto infringe,
vedado lhe é tocar no sacro fogo;
d'alva c'roa de flores a despojam,
adornos de vestal, e o nome perde;
100
assim quando uma vez, oh Vate, atende,
venais hinos os lábios teus verterem,
deixarás de ser Vate; arranca a c'roa,
e co'o selo do opróbrio entra no mundo.
Opróbrio ao Vate que profana a lira!
105
Opróbrio, infâmia a quem insulta o Vate.
Um Deus existe, a Natureza o atesta;
a voz do tempo sua glória entoa,
de seus prodígios se acumula o espaço;
e esse Deus, que criou milhões de mundos,
mal queira, num minuto,
5
pode ainda criar mil mundos novos.
Os que nos leves ares esvoaçam,
os que do vasto mar no fundo habitam,
os que se arrastam sobre a dura terra,
e o homem que para o céu olhos eleva,
10
todos humildes seu Autor adoram.
Todos te adoram, sim, meu Deus, mas como?
este no sol te vê, na lua aquele,
qual um touro te crê, qual um tirano;
e entre si disputando a preferência,
15
todos ufanos conhecer-te julgam.
No céu rutila o sol, e sobre a terra
caem seus raios como chuva de ouro;
mas cada flor, um raio recebendo,
de um esmalte diverso se colora.
20
Oh tu, qu'eu amo como casta virgem!
sim, tu és como Deus, diva Poesia!
Sim, tu és como o sol! Por toda parte
cultos te rendem de uma zona à outra;
cada mortal te ofrece
25
um culto igual à força de sua alma;
qual te julga uma virgem do Permesso,
só de ficções amiga;
qual da verdade o Anjo,
que tudo vê com olhos luminosos;
30
tua voz similhante a uma torrente
tudo abala, e consigo arrasta tudo.
Oh Poesia, oh vida da Natura!
Oh suave perfume
d'alma humana exalado!
35
Oh vital harmonia do Universo!
Tu não és um fantasma de beleza.
Falaz sonho de mente delirante,
e da mentira a deusa;
tu não habitas só da Grécia os montes,
40
nem só de Febo a luz te inspira o canto!
D'alvo manto coberta, roçagante,
lá no meio da noite, quando a lua
só para os mortos alvejar parece,
como a lanterna fúnebre do claustro,
45
tu, encostada à Cruz do cemitério,
como o Anjo da morte,
ao som de uma harpa suspirando exalas
de quando em quando teus sagrados salmos;
quando tu pausas, gemebundo o vento
50
vai também entre os lúgubres ciprestes
teus últimos acentos murmurando.
Nas cavas sepulcrais som lutuoso
de tua voz reboa.
dirias que animados por teu canto,
55
os mirrados cadáveres se elevam
do fundo dos jazigos,
e sobre as lousas curvos,
cantam num coro o místico estribilho.
Sobre o bronco alcantil de alpestre fraga
60
pelos tufões batida, e pelas ondas,
que incessantes se entonam,
tu, sentada, qual virgem
do naufrágio escapada,
o mar contemplas, do infinito imagem;
65
e depois para Deus erguendo os olhos,
teus olhos como dois fanais acesos,
que dos céus co'as estrelas rivalizam,
e ao viajante ao longe o escolho indicam;
ao compasso das vagas gemebundas,
70
tua angélica voz, como um eflúvio,
do mais íntimo d'alma a Deus exalças.
Sobre montes de ruínas dos Impérios,
entre relíquias de abatido templo,
ao qual somente o céu de teto serve,
75
e de lâmpada a lua, tu vagueias,
e te aprazes co'os sérios pensamentos,
que os destroços inspiram.
No campo da batalha, o chão juncado
de ossos que alvejam, de quebradas armas,
80
que sublimes lições aos homens ditas!
Tu és tudo, oh Poesia!
Tu estás na paz, e na guerra,
nos céus, nos astros, na terra,
no mar, na noite, no dia!
85
Oh mágico Nume,
que minha alma adora,
do céu sacro lume,
que abrasa, e vigora
o meu coração!
90
Tu és o perfume,
e o esmalte das flores,
dos sóis os fulgores,
dos céus a harmonia,
do raio o clarão!
95
Tu és a alegria
d'uma alma piedosa,
e a voz lutuosa,
a voz d'agonia,
que escapa do peito,
100
de quem vai do leito
à terra baixar.
Tu és dos desertos
o som lamentoso,
e o eco choroso
105
das vagas do mar.
Tu és a inocência,
e o riso da infância,
do velho a prudência,
do moço o vigor,
110
do herói a clemência,
do amor a constância,
da bela o pudor.
Tu, que cantaste o hino da inocência,
quando imóvel ainda repousava
115
no berço do Oriente a Humanidade;
tu, que cantando sempre a acompanhaste
nos seus dias de dor, ou de triunfo,
acaso morrerás também com ela?
Ou sem ti, como um astro em seu eclipse,
120
se arrastará sem vida a Humanidade,
até toda no túmulo sumir-se?
Quando o sol, que é tua imagem,
no seu zênite apagar-se,
e tudo outra vez do nada
125
no escuro golfo abismar-se:
Tu, que és a imagem do Eterno,
terás fim nesse momento?
ou terás nova existência
do Senhor no pensamento?
130
Sim; quando tudo extinguir-se,
guardará Deus na lembrança
de tudo que agora existe
uma viva similhança.
Essa imagem a Deus presente
135
serás tu, oh Poesia!
Tu és do Eterno um suspiro,
que enche o espaço de harmonia.
Veneza, maio de 1835.
Nos Alpes, 14 de outubro de 1834
Quando se arrouba o pensamento humano,
e todo no infinito se concentra,
de milhões de prodígios povoado;
quando sobre o fastígio de alto monte,
como um colibri sobre altivo robre,
5
na vastidão sidérea a vista espraia;
e vê o sol, que no Oriente assoma,
como num lago em própria luz nadando,
e a noite, que se abisma no Ocidente,
arrastando seu manto tenebroso,
10
de pálidas estrelas semeado;
quando dos gelos, que alcantis coroam,
vê a enchente rolar em cataratas,
por cem partes abrindo largo leito,
fragas, e pinheirais desmoronando;
15
quando vê as cidades enterradas
a seus pés na planície, e negros pontos
aqui, e ali, moverem-se sem ordem,
como abelhas em torno da colmeia;
o homem então se abate; um suor frio,
20
que o suor que o moribundo côa,
rega-lhe o corpo extático; sua alma,
como um subtil vapor, que o lírio exala,
ferido pelo raio matutino,
da terra se levanta; e o corpo algente
25
qual um combro de pó morto parece...
Ela está no infinito! -Então lhe troa
uma voz, como o eco das cavernas,
quando os ventos nos ares se debatem;
como um ronco do Oceano repelido
30
por estável penedo; como um grito
das entranhas da terra, quando acesas
de sua profundez lavas borbotam;
como o rouco bramido das tormentas;
é a voz do Universo! -voz terrível,
35
porém harmoniosa, que proclama
a existência de um Ser, que de si mesmo,
de sua onisciência, e eterna força,
tudo tirou, quanto o Universo encerra.
Os céus, os mundos, o Oceano, a terra
40
é um vasto hieroglífico, é a forma
simbólica do Ser aos olhos do homem.
O movimento harmônico dos orbes
é o hino eterno e místico, que narra
altamente de um Deus a onipotência.
45
Tudo revela Deus, -e Deus é tudo.
De tal grandeza sotoposto ao peso,
como se o esmagasse ingente mole,
o homem se aniquila, e desparece,
qual no profundo pego um grão de areia.
50
É aqui, oh meu Deus, calcando nuvens,
parecendo tocar o céu co'a fronte,
qu'eu reconheço a imensidade tua
existe este Universo, existe o homem,
porque de todo o Ser tu és a origem.
55
Aqui, para louvar teu santo Nome,
é fraco o peito humano, é fraca a
língua,
é fraca a voz, que titubante hesita
tão alto remontar, e no ar perder-se,
antes que de astro em astro repetida,
60
de um céu a outro céu, de um Anjo a outro,
vá retinir, Senhor, em teus ouvidos,
como discorde som de rota lira.
Alva nuvem, que toucas este monte,
desce um pouco, e recebe-me em teu dorso;
65
asinha ala-me ao céu; na etérea plaga,
vendo o sol de mais perto, talvez possa,
com sua luz benéfica animado,
altíssono entoar um hino excelso,
digno de Jeová, que eterno escuta
70
dos angélicos coros a harmonia.
Abre-te, oh céu azul, que a mortais olhos
a mansão do Senhor zeloso ocultas!
Abre-te, og céu azul; deixa minha alma
saciar-se co'a luz da Sião santa.
75
Sobe, meu pensamento, voa, rompe
os turbilhões dos Querubins, e Tronos,
mais belos que mil sóis, mais coruscantes,
que em vórtice perene estão ladeando
do Eterno Padre o luminoso sólio.
80
Oh arrojado pensamento humano,
por mais que em teu socorro os astros chames,
por mais que sua luz o sol te empreste,
seu ouro a terra, o céu a imensidade,
os rios a corrente, os campos flores,
85
suas asas o raio, os sons a lira,
e a noite seu mistério, alfim se tudo
invocado por ti, a ti se unisse,
não puderas ainda em teus transportes
os louvores tecer do Onipotente!
90
Mas, oh Deus, que missão tens confiado
a este fraco ser, que sobre a terra
entre os mais seres como um rei se ostenta,
e único para ti erguendo os olhos,
parece teu rival? Missão augusta
95
é sem dúvida a sua; e o seu destino
não é o d'alimária!... A Natureza
obedece a seu mando, como se ele
entre Deus, e a terra colocado,
órgão fosse das leis da Providência.
100
Quem a ele se opõe? -Embalde o Oceano
com cem braços separa os continentes.
O homem destrona os robres, e os pinheiros
das fragas da montanha, ousado os lança
sobre a cerviz do Oceano, enfreia os ventos,
105
e assoberbando as vagas furibundas,
que ante seu gênio quebram-se gemendo,
domina, e calca o túmido elemento,
e atravessa de um pólo a outro pólo,
como atravessa os ares veloz águia.
110
aqui bramando, um rio se devolve,
qual serpente feroz medo incutindo;
co'uma arcada de pedra o homem cobre-o;
ele a derruba? -nova arcada o doma.
Como gigantes firmes, alinhados,
115
para impedir-lhe a marcha, as frontes erguem
enormes Alpes, açoutando as nuvens
co'a coroa de gelo, e co'os penachos
de branca carambina, e verdes selvas;
não retrograda o homem, não desmaia!
120
Quando sobre a cimeira o sol se encosta,
e a vista estende à profundez do vale,
o sol já no árduo afã vencendo o
enxerga;
quando transmonta o sol, o homem dá tréguas,
e descansa na já vencida estrada!
125
de dia em dia assim prossegue ovante;
ora esbroa um cabeço mais supino,
e co'as ruínas desse outro nivela;
ora sobe, ora desce, ora torneia,
ora penetra a rigidez do monte,
130
como a seta do Índio os ares rompe,
e a noite das abóbadas varando,
d'outro lado vai ver o céu, e o dia!
quem tu és? Quem tu és, que podes tanto?
Tu convertes os bosques em cidades;
135
marcas do sol o giro, e o dos cometas;
do povo alado as regiões exploras;
nem no mar a baleia está segura,
nem nas espessas selvas o elefante!
Quem tu és? Quem tu és, que podes tanto?
140
Toda a terra está cheia com teu nome;
um século transmite a outro século
dos teus feitos a história portentosa;
tu só marchas, tu só te desenvolves,
e inda não recuaste de fadiga!
145
Com que sinal selou a tua fronte
a mão do Criador? -Donde descendes?
Quem tu és? Quem tu és, que podes tanto?
Não, não és para mim mais um enigma!
Conheço a origem tua, e o teu destino
150
tua missão conheço sobre a terra.
A Natureza toda te respeita
porque és do Criador a obra-prima,
porque transluz em ti o seu transunto.
Não é à força tua que se curva
155
a terra, que se à força se curvasse,
seria o elefante o rei da terra.
É à tua sublime inteligência,
é a Deus, só a Deus, que tu refletes,
como do sol a luz reflete a lua.
160
Nas barreiras da morte tudo esbarra,
menos o homem, que atravessa airoso,
aí o mortal corpo abandonando,
para no seio entrar da Eternidade;
assim o viajor o pó sacode,
165
e deixa o companheiro de viagem
manto todo coberto de poeira,
quando à cidade desejada chega.
A alma não morre, porque Deus não morre.
Assaz, oh Deus, o homem sobre a terra
170
revela teu poder, tua grandeza.
A Razão, és tu mesmo; -a liberdade,
com que prendaste o homem, não, não pode
dominar a Razão, que te proclama!
Se muda para mim fosse a Natu,
175
na Razão que me aclara, e não é minha,
senhor, tua existência eu descobrira.
Eu te venero, oh Deus da Humanidade!
Meu amor o que tem para ofertar-te?
digno de ti só tem minha alma um hino,
180
e esse hino, oh meu Senhor, é o teu Nome!
Que pode o homem dar a quem dá tudo?
Só em meu coração suspiros tenho,
suspiros para todos os momentos.
De ti, Senhor, minha alma necessita,
185
como de luz meus olhos, de ar meu peito.
E se me é dado a ti subir meus votos,
se é dado pela mãe pedir um filho,
voem meus votos sobre as ígneas asas
do sol, e tu, Senhor, propício atende:
190
Nada por mim, por minha Pátria tudo;
fados brilhantes ao Brasil concede.
Deus nos deu a fantasia;
quadro vivo, que nos fala,
d'alma profunda harmonia.
Como um suave perfume,
5
que com tudo se mistura;
como o sol que flores cria,
e enche de vida a natura.
Como a lâmpada do templo
nas trevas sozinha vela,
10
mas se volta a luz do dia
não se apaga, e sempre é bela.
Dos pais, do amigo na ausência,
ela conserva a lembrança,
aviva passados gozos,
15
e em nós desperta a esperança.
Por ela sonho acordado,
subo ao céu, mil mundos gero;
por ela às vezes dormindo
mais feliz me considero.
20
Por ela, meu caro Lima,
viverás sempre comigo;
por ela sempre a teu lado
estará o teu amigo.
Mal que à Natura se abre a inteligência,
e o primo pensamento a alma desperta,
logo a idéia de Deus d'ela se apossa,
e a origem sua, e o seu destino aclara.
Súbito um fogo, mais que o sol brilhante
5
que as gerações dos trópicos abrasa,
mais veemente que os vulcões da terra,
n'alma se ateia, fogo inexaurível,
casto fogo de amor, que interno a lavra,
E a Deus a sobe em espontâneo culto.
10
Não, o medo não foi quem sobre a terra
os joelhos dobrou do homem primeiro,
e as mãos aos céus ergueu-lhe! Não, o
medo
não foi o criador da Divindade!
Foi o espanto, o amor, a consciência,
15
e a sublime efusão d'alma, e sentidos!
Viu o homem seu Deus por toda parte,
e sua alma exaltou-se de alegria.
Mas no amoroso êxtase não pára,
a interna adoração só lhe não
basta,
20
não se farta de amor, que amor sagrado
é invencível, poderosa força,
que o espírito levanta ao infinito,
como a atração os orbes equilibra
na imensidade, a que escapar não podem.
25
Deve o espaço conter a sacra imagem
de sua adoração, devem os filhos,
os netos devem nas futuras eras,
vendo esta imagem, adorar o Eterno.
Mas, oh homem, que ousado intento é este?
30
Erguer um templo a Deus!... Que! porventura
templo o espaço não é digno do Eterno?
As montanhas, o mar, os céus, os astros
assaz não ornam do Senhor o templo?
Ou temes que em tão vasto santuário,
35
nesse profundo abismo do infinito,
vê-lo teus olhos míopes não possam?
Como possível é que espaço estreito
abranja o Criador, que enche o Universo?
Mas pagas um tributo; -Ele to aceita.
40
Obreiro do Senhor, eia, trabalha,
sem descanso trabalha dia, e noite;
que teu Deus não repousa um só instante,
para a ordem manter de tantos mundos.
Ah se ele um só minuto, repousasse,
45
que seria de ti, deste Universo?
Alfim teu templo ergueste; reuniste
tudo que há de mais belo sobre a terra,
e sec'los no trabalho se passaram!
Tudo aqui fala, tudo aqui revela
50
a força oculta que sustenta o homem,
e o destino imortal na Eternidade.
A rigidez do mármore, e a brancura
duração, e pureza simbolizam;
a larga base, a altura, a esbelta forma,
55
a agulha, cuja ponta as nuvens rompe,
e parece querer fugir do espaço;
a áurea Virgem, que brilha em seu fastígio,
e este povo de estátuas, que a rodeiam,
todas de branco mármore polido,
60
que a glória do Senhor perene cantam;
tudo, enfim tudo sem cessar proclama,
que o pensamento que tão alto voa,
que o pensamento que tais obras cria,
que o pensamento que só Deus concebe,
65
tem no tempo a existência, e não se curva
à lei que rege o habitador do espaço.
Tão simples como Deus, donde ele emana,
não se aniquila como bruta mole;
mas em louvor sem fim, a Deus unido,
70
vive eternal em toda a Eternidade.
Assim é que o espírito celeste,
que a massa humana anima, e nela impera,
de seu Deus concebendo a idéia pura,
da terra se desprende se sublima,
75
e do sagrado amor nas ígneas asas
sobe ao seio do Eterno, que o gerara.
Assim é que das lâmpadas do templo
pirâmides de fogo se levantam,
e se perdem nos ares, qual se perde
80
o pensamento humano no infinito.
Santa Religião, sublime, augusta,
tu a idéia de Deus esclareceste,
idéia que, nas trevas que envolviam
a alma humana, brilhou como um relampo.
85
Divina inspiração, tu só podias
o espírito subir ao seu Princípio,
a despeito do mundo, e dos sentidos
nem sempre verdadeiros. Tu revelas
sacras verdades aos humanos úteis,
90
que fora de teu grêmio embalde o homem
orgulhoso procura; ao desgraçado
oculta mão estendes caridosa:
Sempre consoladora, afável sempre,
que mal há aí, que em ti cura não ache?
95
Ao som de tua voz misteriosa
os errantes selvagens suspenderam
as mãos de sangue tintas, e prostrados
sobre a terra, até ali inculta e brava,
a insólita voz tua repetiram
100
em espontâneo arroubo. -A Natureza
riu-se então, quando viu pela vez prima
um homem abraçar o outro homem,
e em socorro comum viver jurarem.
Quis o homem tecer os teus louvores,
105
e a primeira palavra foi um hino,
o primeiro discurso Poesia.
E o homem, que até ali solto vagava,
fraco, impotente entre animais ferozes,
pelo místico cântico atraído,
110
a bronca penedia abandonando,
a viver começou em sociedade.
O gênio então nasceu! -Como para o mundo
entre os astros o sol mais claro brilha,
e aos outros astros sua luz envia,
115
Deus o gênio acendeu entre mil almas,
para ser o fanal da Humanidade.
Santa Religião, amor divino,
que benefícios sobre a terra espalhas!
Quanto é misterioso o Ser que inflamas!
120
De quanto ele é capaz! Vejo donzelas,
roboradas por ti, vencer a morte!
Vejo feros tiranos destronados,
vejo Nações erguidas, e cidades,
seus louros a teus pés heróis deporem,
125
as Ciências, e as Artes florescentes,
firme a Moral, as Leis, a Liberdade,
e a Humanidade inteira que te abraça,
e te proclama como Mãe de tudo.
Oh das Religiões a mais perfeita,
130
oh única de Deus, e do homem digna!
Religião plantada no Calvário,
e co'o sangue do Cristo alimentada!
Religião de amor, de paz, de vida!
tu, que civilizaste a Europa toda,
135
e primeira na América lançaste
o gérmen da grandeza, a que ela aspira;
tu, que marcas de Deus a majestade,
os direitos do homem sobre a terra,
e o seu porvir sublime além da morte;
140
tu, que aclaras os povos, e co'os povos
de progresso em progresso ovante marchas,
como a mãe que acompanha o caro filho,
sem que a tua divina essência percas;
teus inefáveis dons benigna espalha
145
sobre os filhos dos homens, sempre... sempre.
Religião, inflama, e purifica
meus pensamentos, e conforto presta
ao infeliz peregrino que te invoca,
e que só em teu grêmio paz encontra.
150
Milão, 17 de outubro de 1834
Oh minha infância! Oh estação de flores!
De inocente ilusão alva saudosa!
Inda hoje te apresentas
ante mim, como a imagem deleitosa
de um sonho que encantou-me a fantasia,
5
ou como a aurora de um formoso dia.
Oh da infância atrativos lisonjeiros!
Mentirosos afetos!
Com que prazer amigos passageiros,
inúmeros, na infância contraímos!
10
E quão fáceis após os repelimos,
de ligeiras palavras agastados.
Oh como é lindo
o tenro arbusto
na primavera!
15
Como parece
que se está rindo,
quando o balança
Zéfiro brando;
quando descansa
20
sobre os seus ramos
o passarinho,
e modulando
doces reclamos,
vai o ar vizinho
25
harmonizando!
Como é belo esmaltado de flores,
exalando balsâmico aroma;
d'ele em torno voltejam amores,
e se escondem debaixo da coma.
30
Mas eis que o adusto
vento do norte,
soprando forte,
já o abala;
o tenro arbusto
35
neste tormento
todo se dobra;
a verde gala
amarelece;
e o duro vento,
40
que em fúria cresce,
vai arrancando
folha por folha,
e sobre a terra
secas lançando;
45
té que despido
o deixa enfim.
O tempo assim
nos vai roubando
gratos prazeres
50
da tenra idade,
quantos amigos
a infância tem;
até que vem
a puberdade
55
com seus perigos;
e desta sorte
chega a velhice,
tronco gelado,
desamparado;
60
até que a morte,
como um tufão,
lança-o no chão!
Oh quão perto a velhice está da
infância!
E quão perto da infância a morte adeja!
65
Genebra, outubro de 1834
Vós me vedes, Deus Eterno,
como eu sou tão pequenina;
minha alma é inda inocente,
tão pura como a bonina.
Débeis como minhas vozes
5
são inda meus pensamentos;
do mundo nada conheço,
nem prazeres, nem tormentos.
Qual tenro botão de rosa
que à sombra da rosa cresce,
10
sem temer o vento, e a chuva,
de um frouxo raio se aquece.
Mas pouco a pouco crescendo,
desabrocha, e cheiro exala,
orna o prado que a sustenta,
15
e da roseira é a gala.
Assim eu filhinha tenra,
a meus pais devo esta vida;
a seu lado eles me educam,
por eles serei querida.
20
Hoje inocente me chamam!
oh como é bela a inocência!
É a virtude dos Anjos,
é das virgens a ciência.
Vós, oh Deus, que podeis tudo,
25
concedei-me por piedade
que este aroma da inocência
me acompanhe em toda idade.
Oh meu Deus, dai à minha alma
puro e santo pensamento,
30
como o perfume do templo,
que sobe ao vosso aposento.
Dai a meus pais longa vida,
e àqueles que à minha infância
prestam socorros contínuos
35
com tanto amor e constância.
Que felizes, que ditosos
por vós, oh Deus, protegidos,
passem seus dias, seus anos
como astros, sem ser sentidos.
40
Vigorai minha fraqueza
co'a vossa sabedoria.
Oh Deus, ouvi minhas preces,
escutai-me neste dia.
Gigante do porvir, oh Mocidade,
erguei a fronte altiva
entre as brancas cabeças da velhice,
como ao sopro vital da primavera
o pimpolho gentil se desabrocha
5
entre os já secos e curvados troncos.
Subi em sacro arroubo a mente vossa,
como uma labareda;
contemplai o passado;
em silêncio o futuro vos aguarda,
10
e o presente se curva ao vosso mando.
Deus em vós ateou do gênio o fogo,
que a Humanidade guia,
como a estrela polar o navegante,
ou como a chamejante, ígnea coluna,
15
que o povo de Moisés guiou nos bosques;
sagrado fogo que jamais se extingue.
Em vosso coração palpita a vida,
o brio, e a força os membros vos circulam,
flâmeas asas vos dá o entusiasmo,
20
é vulcânea vossa alma,
e d'águia os olhos tendes,
com que medis o espaço, o céu, e o globo.
A terra vos pertence, oh Mocidade!
por vós renasce o mundo a todo o instante,
25
por vós resplende juventude a terra;
não envelhece o céu, nem as estrelas,
nem se encanece o sol no longo giro.
Em vós só se resume a Humanidade,
que a passos graves ao través dos evos
30
ovante marcha sempre fresca e jovem.
Para vós o passado é muda estátua,
que o grande livro aponta,
onde a verdade, e o erro se confundem,
bem como o ouro, e o esmeril no antro da terra
35
os séculos selaram esse livro,
quando nele seus fastos transcreveram.
Eis a página branca,
que aguarda os feitos vossos;
meditai, meditai, antes de enchê-la!
40
Quando já fatigados do caminho,
sobre a pedra da tumba repousardes,
avante marcharão os filhos vossos;
e esse livro tomando-vos, um dia
irão saber o que seus Pais fizeram.
45
Qual é vossa missão? Qual vossa idéia?
Oh Mocidade, um só caminho existe,
um só trilhar vos cumpre,
se vos apraz o bem, se o bem vos chama.
É longa a estrada, aspérrima e difícil!
50
Mas um Astro em seu fim claro rutila,
permanente farol que a cor não muda;
olhai, -vede-o ao través do nevoeiro,
que ante vós remoinha,
como ele imóvel sua luz esparge!
55
Esse Astro é Deus! -Oh Mocidade, a Ele!
Ah não retrogradeis, -a Ele, a Ele.
Vedes vós como se ergue encapelado
ante a convulsa proa o mar em montes?
Vedes a nuvem que no céu negreja?
60
O sol que empalidece? -Ouvis os roncos
de hórridos ventos que nos ares troam?
O raio crepitante que espedaça
velas, e mastro? a nau, que soluçando,
qual nas vascas da morte o moribundo,
65
nos vaivéns sobe, desce, e se debate,
perde o rumo, sem tino a esmo vaga,
roça no escolho a quilha, ali recua,
ao capricho dos ventos, e das vagas,
té que santelmo lhe ilumine o tope,
70
e do naufrágio a salve?
Tal é da Humanidade o fido emblema!
tal sua marcha foi, tal é ainda,
por mil contrários ventos combatida!
Porém malgrado a fúria, e a tempestade,
75
a Humanidade marcha; -e Deus a guia.
Forceja a humana indústria
para domar o mar, pôr freio aos ares;
talvez um dia os ares assoberbe,
até aqui indomáveis;
80
e às suas leis submissos,
também os ares, desdobrando as asas,
no espaço o Gênio vencedor transportem.
E por que não será melhor um dia
do que até hoje foi a Humanidade?
85
Se Deus mil vezes a salvou da morte,
somente agora a deixará sozinha,
antes de realizar a augusta idéia,
que é sua vida, e pela qual só luta?
Qual é a grande idéia,
90
que nem mesmo nos mais cruéis reveses
jamais abandonou a Humanidade?
A perfeição, o bem! -Ah não me iludo!
Vossa idéia será vosso destino;
inata idéia só do Eterno herdastes,
95
Deus em vós a gravou; verace é ela.
Erguei os olhos vossos,
e cravai-os no céu, oh Mocidade!
Vede o astro da eclíptica,
que girando no centro do Universo,
100
a terra vivifica,
a terra que vos nutre, opaca mole
que por ele de luz se adorna, e esmalta?
Em torno ao sol em perenal cadência
outros astros satélites gravitam,
105
sem deslizar das órbitas traçadas
pelo compasso eterno!
Eis o físico mundo,
emblema de outro, mais sublime ainda,
cujo Sol sempiterno enche o Universo.
110
Vossa alma é um satélite desse Astro,
e sem a sua luz ela não fulge;
similhante ao planeta que vos nutre,
que na ausência do sol morto negreja.
Mas deste Astro, que excede à mortal vista,
115
sabeis acaso o Nome?
Perguntai às estrelas que alcatifam
os degraus de seu sólio;
perguntai ao trovão, ao raio, às ondas,
à terra perguntai, à águia celeste,
120
e ao verme que rasteja:
Jeová, Adonai, Deus, Harmonia,
eis o Sol de vossa alma.
Por ele só viveis. Ah! se um instante
em centrífugo vórtice deixardes
125
o sulco de seu dedo,
desgarrada, e sem lei, como um meteoro,
vos perdereis no espaço.
Gigante do porvir, oh Mocidade,
aprendei a entoar de Deus o Nome;
130
cantai, cantai da Juventude o hino,
marchai, louvando do Senhor a glória,
como nos bosques de Israel os filhos.
Ante vós fugirão espavoridos
tiranos inimigos;
135
o mar recuará as ondas suas,
e os montes vos darão doces torrentes.
olhai, ah vede a prometida terra!
Ei-la! Marchai ovante.
Cantai, magnificai de Deus o Nome.
140
Entoa, oh minha alma,
um hino ao Senhor,
um hino de glória
ao teu Criador.
A luz que te aclara,
145
é d'Ele emanada,
e a tua linguagem
por Ele inspirada.
Embalde procuras
o bem sobre a terra;
150
o bem que desejas,
só n'Ele se encerra.
No meio das ondas
o nauta mais forte
pergunta às estrelas
155
qual é o seu norte.
Se o vento enfurece,
se o mar se exaspera,
invoca seu Nome,
e salvar-se espera.
160
Se tu sempre atenta
seu mando escutares,
e por seus ditames
fiel te guiares:
Que haverá que possa
165
roubar-te a vitória?
o bem terás certo,
terás certa a glória.
Entoa, oh minha alma,
um hino ao Senhor,
170
um hino de glória
ao teu Criador.
E vós da Pátria minha, oh Mocidade,
de quem os feitos celebrar desejo...
Mas por que um suspiro inopinado
175
o canto me interrompe?...
Por que se apagam de meu gênio as asas,
que expandidas nos ares flamejavam,
e esmorecidas caem, qual ferida
pela seta do Índio
180
soberba arara, no celeste vôo,
Em vórtices gemendo baixa à terra?
Oh Mocidade, ouvi, não meus acentos,
mas a voz da verdade,
que em minha alma troveja,
185
e me abala dos ossos a medula.
Vós sois como uma flor não bafejada
pelo sopro vital da primavera,
que malnascida, lânguida se inclina.
As lágrimas do mísero cativo
190
caíram sobre vós, quando embalaram
vosso berço seus braços;
sangue do cativeiro alimentou-vos;
o vício dele herdastes,
senhores vos julgais, e sois escravos.
195
Entre feras nutrido, é fera o homem;
doutrinado entre servos,
afeito ao mando, a Liberdade odeia,
e o peito se endurece.
E vós cuidais ser livres!
200
Por vós, por vós só falo, oh Mocidade!
Ah não me detesteis; malgrado vosso
o mal herdastes; -mas o mal tem cura.
Ah quando bons costumes,
pura Moral, amor nobre e celeste
205
vos tomarão no berço?
Ah quando ah, quando a sã Filosofia,
sobre vós seus fulgores espargindo,
destronará a túmida indolência,
que o vosso clima infesta,
210
e as portas à Ciência, e às Artes fecha?
O Egoísmo, que só para si olha,
tudo em si concentrando,
e os laços quebra que os humanos ligam
em fraternal amplexo,
215
quando, de vós fugindo, aos vossos olhos
deixará que paixões que alma enobrecem,
sublimes resplendeçam?
Alerta, oh Mocidade!
a Pátria por vós chama.
220
Mostrai que da verdade
santo amor vos inflama.
Alerta! erguei a fronte,
medi vosso terreno;
e o vale, e o prado, e o monte
225
se dobre ao vosso aceno.
Não diga o estrangeiro,
que vê tantas belezas,
que o povo Brasileiro
é pobre entre riquezas.
230
Bani tanta vaidade;
ciência, Indústria, e Artes
são só da Liberdade
os firmes baluartes.
Erguei-vos, e sem susto
235
lutai com o erro fútil;
amai tudo que é justo,
santo, sublime, e útil.
Alerta, oh Mocidade!
a Pátria por vós chama.
240
Mostrai que da verdade
santo amor vos inflama.
Paris, dezembro de 1835